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Anos 80: como era para... publicar?

Ver Currículo - Fernando C. Straube • 13 de August de 2018


Sentei-me concentrado. Estava ladeado por cadernetas de campo com rabiscos quase incompreensíveis, que dividiam caoticamente cada espaço do papel, estratégia mais para a economia do que para a redação propriamente dita. Espalhados pelo chão, separatas amareladas com grampos já enferrujados e livro cheios de pó estavam apoiados diretamente sobre o impecável piso de tacos de imbuia, recentemente encerado. Era janeiro de 1983 e eu tinha algo importante a escrever e publicar: um novo registro de um pássaro, até então desconhecido naquela região.

Olhava meu material todo e dava início ao cansativo processo, planejando como iria abordar o tema e também como faria para substituir as lindas fotografias colhidas no campo por textos sem-graça e cheios de termos técnicos. Afinal, artigos com fotografias, além do mais coloridas, eram praticamente inviáveis. Tinham de ser custeados pelo autor, que arcava com o preço dos fotolitos e da impressão. Chegará um dia em que uma imagem realmente valerá por mil palavras? Ainda não era aquele tempo.

Contento-me com as palavras que, agora, são minhas únicas ferramentas. Cada detalhe obtido naquele inesquecível trabalho de campo pela Serra do Mar precisava ser aproveitado mas, ao mesmo tempo, resumido. Na ciência não há lugar para palavras demais, nem estilos prolixos. Abro a gaveta da escrivaninha e pego papéis que já foram usados em um dos lados: o verso em branco é o que se usava para preparar o manuscrito. Caneta esferográfica e mãos à obra. Título. Bem, vou deixar para depois, mas deve começar com “Primeiro registro de”. Ou seria “Contribuição ao conhecimento de...” ? Mas valha deus: qual artigo não é uma contribuição ao conhecimento de alguma coisa?!

Vamos para o Abstract. Como fazer? Não domino o inglês. Vou improvisar. Pego abstracts de outros artigos que tenham título “First record of” escritos em inglês, em revistas americanas e copio fragmentos. Vou encaixando pedaço por pedaço até que a coisa tome um sentido mais ou menos lógico. Felizmente trabalho em um museu de história natural. E dos antigos. Daqueles que têm uma biblioteca institucional. Como fazem os que não dispõem desse recurso? Deixe para lá. Vamos ao que interessa. “This paper is...”. Ótimo! É assim que vou começar meu abstract.

Mas, agora algo me veio à cabeça: como vou escrever um abstract de algo que ainda não está escrito? Como poderei resumir o texto ainda inexistente? Certo. Deixemos para depois. Vamos à introdução.

Cadê a literatura? Será que o assunto nunca foi estudado e publicado ou será, para meu desespero, que há muita coisa já escrita e simplesmente não tenho os artigos? Dos poucos de que disponho, acho melhor não consultar as referências bibliográficas. Vai que acho algum título referindo-se exatamente ao que acabo de descobrir?

Será que algum dia vão inventar um sistema internacional que permita a consulta de obras, de palavras-chave, de autores e de espécies diretamente de meu escritório? Algo que seja realmente inteligente, para o que bastaria escrever “tal espécie” e, em seguida, eu pudesse acessar dados de todas as partes do planeta sobre o tema... Imagine só. Aperto aqui e ali e tenho uma revisão bibliográfica completa, ou quase completa. Nem preciso gastar meu tempo e meu dinheiro viajando para as cidades maiores, que têm grandes museus e universidades, cada qual com respeitáveis bibliotecas. Poderia ver fotos coloridas; poderia escutar sons de cantos de pássaros e, ainda, assistir a vídeos. Que coisa do outro mundo. Quase inacreditável!

Ora, ora. Voltemos ao trabalho e chega de sonhar. Amanhã vou até a universidade local e tento o “Programa de Comutação Bibliográfica” ou, para os íntimos, COMUT (assim mesmo, com letras maiúsculas). Tomara que as bibliotecárias estejam de bom humor. Ainda que, mesmo assim, elas somente possam me mostrar uma lista de títulos publicados sobre o que quero abordar. Depois tenho de conseguir cópias dos artigos originais que, claro, dificilmente serão conseguidos por aqui.

Pois é. Vou ter de deixar a introdução para depois. Isso está me irritando. Afinal qual a maneira realmente objetiva para se escrever um artigo nas condições de que disponho? Vou tentar de outro jeito. Separo uma folha para a introdução, uma para os métodos, outra para os resultados e, por fim, uma para as referências. Assim, ao longo do tempo, vou escrevendo conforme vou conseguindo os materiais e as informações. Tomara que dê certo.

Beleza. A coisa está funcionando. Já tenho uma página de introdução e outra de métodos. Há muita coisa escrita sobre resultados e a lista de literatura citada já está tomando corpo.

A visita à universidade foi produtiva. Descobri que não há nada ou quase nada publicado sobre a “minha” espécie. Mas, que é isso? Alguém já a registrou em 1929 aqui no Estado. Foi bom não ter definido o título. Vou alterar de “Primeiro registro” para “Novo registro”. Afinal, 1983 é muito mais “novo” do que 1929 que foi o ano em que meu pai nasceu. Agradeço à tecnologia porque temos a máquina de datilografia que apenas será usada quando eu tiver certeza absoluta do que vou escrever!

Passaram-se alguns dias. Talvez fossem semanas; quem sabe um mês ou dois. Independente desse detalhe cronológico, eu já tinha tudo escrito e pronto em folhas reaproveitadas, manuscritas com caneta azul. Agora bastava desconsiderar as rasuras e seguir uma lógica para desvendar o que eu queria mesmo apresentar.  E o trabalho tinha ficado bonito, grande, cheio de palavras técnicas – que é para impressionar – que formavam uma pilha com quase 10 páginas.

Sento-me à mesa com circunstância. Coluna ereta, retiro a capa de napa verde da máquina de datilografia. Ajusto o “carro” para lá e para cá, só para ouvir o “plim” que anuncia o fim da linha; também o giro para frente e para trás, escutando o som de engrenagem peculiar. Testo o “braço”, rodando o “rolo” e aperto compulsivamente a tecla de maiúsculas (um tipo de Shift, só que mecânico), eventualmente travando-a com a pequenina tecla logo acima dela (uma espécie de Caps Lock). Já posso começar.

 

 

Vou ao pacote de sulfite. De quantas folhas disponho? Acho que umas 30 vão dar para o gasto, pois preciso digitar com cópia. Primeira página. Preciso colocá-la cirurgicamente no rolo, para que o texto não fique torto; o mesmo cuidado com a outra página, posta atrás e da primeira separada por uma folha de papel carbono. Ora, vejam: quando é que o xerox vai ser algo acessível? Quando é que vou poder pagar um montante honesto por meia dúzia de cópias? Bem, isso para um estagiário ainda é utopia...

Lá vamos nós. Título com letras maiúsculas. E agora? Será que a regra prevê isso e – como pude esquecer? – quais são as normas da revista? Preciso de um exemplar dela, preferencialmente, do último número para saber como devo escrever o artigo e, claro, para quem irei enviar o material. Vou ter de deixar para amanhã, bem cedo, para ir à universidade para acessar o volume mais recente do periódico e as informações necessárias para a remessa. Afinal, eu não posso errar, quando uso uma máquina de escrever. É uma pena que o museu onde trabalho tenha uma magnífica coleção bibliográfica, mas toda ela antiga e defasada, visto que o momento agora é de contenção de despesas, especialmente em instituições públicas de pesquisa.

Volto da universidade. Já estou na metade da manhã, mas tenho tudo do que preciso. Leio com atenção: o título deve ser grafado com letras maiúsculas. Pois é... Eu deveria ter seguido minha intuição. Lá vou eu: tec-tec-tec. Quantas palavras tem o título? Preciso dosar isso para que não acabe com uma ou duas letras na linha seguinte. Uma, duas, três...Cinquenta e duas letras. Vou ver quantos caracteres cabem em cada linha do carro desta máquina de escrever. Tec-tec-tec – plim! Vai caber. Agora calculando, vejo que posso dar quatro espaços antes de começar, para colocar o título precisa e caprichosamente no meio da linha. Vai ficar impressionante! 

Autor e instituição. Introdução. Na primeira citação, precisarei ter um artifício especial. Como vou escrever et al. em itálico? Ah, está aqui nas instruções aos autores: devo sublinhar e o mesmo vou proceder com os nomes científicos. Mas está ficando feio. O rolo de tinta tem duas cores – preta e vermelha – e, quando eu acesso as maiúsculas (afinal para sublinhar devo apertar o número 6 ao mesmo tempo que a tecla das maiúsculas), exponho a faixa vermelha e isso torna meu texto algo bicolor...algo meio flamenguista ou coisa que eu valha. O que fazer? Não tem como remediar – vai ficar assim mesmo.

Tec-tec-tec – plim; tec-tec-tec – plim! Tec. Ops, errei. Que lástima. Apanho o papelzinho que tem uma tinta branca transferível, volto na posição em que digitei a letra e – pimba! Branqueou. Apagou. Convenhamos, nada muito bem apagado, mas vai dar para o gasto. Rebato a letra duas vezes, para garantir. Às vezes fura o papel, portanto, preciso ter cuidado. Mas, e a cópia? Preciso retirar o original, o carbono e a cópia. Recoloco apenas a folha de cópia e corrijo da mesma forma. Tomara, no entanto, que eu acerte exatamente o lugar onde estava a letra. Caso contrário, vou ter de começar tudo de novo. Sorte que estou na introdução!

Recomeço. Depois de alguns outros erros e a mesma técnica corretiva, acabo a primeira página. Mas como vou saber quantas linhas caberão na página? Vamos pela intuição. Tomara que eu não coloque linha demais, senão, o papel escorrega e a folha vai se embora no meio da digitação. Por que é que não inventaram ainda uma máquina com controle de linhas órfãs e viúvas?

Acabei a página 3, mas, que surpresa desagradável! Notei que havia posto o papel carbono com a face errada, ou seja, com a tinta virada para dentro. Agora tenho uma página original com a cópia impressa no outro lado do papel da mesma folha e uma cópia em branco! Que sina! Preciso rebater toda a folha...

Já está no fim do dia e consegui acabar meu original. Deu somente cinco páginas. Parecia muito mais no formato manuscrito. Mas até que ficou bom e tenho, além do original, uma cópia meio borrada e suja nos cantos – mas que irá ser suficiente. Ali consigo inclusive ver as minhas impressões digitais, que apareceram quando de minha retirada do conjunto para correções. Essa cópia devo guardar em meus arquivos, para o caso dos originais se perderem nos correios, coisa que não é das mais raras hoje em dia. Se isso acontecer – e espero que não – terei de fazer tudo de novo, com a única vantagem de poder copiar de algo impresso e não manuscrito. 

Com o original em mãos, passo a digitar a carta de encaminhamento. Obedeço o mesmo protocolo, não esquecendo que as máquinas não têm o número 1 e, para escrever o ano da data, tenho de usar a letra L, minúscula. Assino com minha caneta bic, a mesma que eu usava, há poucos anos atrás, para atirar pedaços de borracha nos colegas da escola, assoprando pelo tubo vazio.

Envelope pronto. Agora vou à agência dos Correios e ali posto o material. Acho uma pena não poder incluir um mapa no artigo, luxo que daria uma circunstância toda especial à versão definitiva, encartada na revista. Mas não tem choro. Para isso precisaria de papel vegetal e caneta nanquim, além de um mapa como base para por debaixo do que será desenhado. Teria de ter, claro, uma caneta nanquim, preferencialmente 0,3; a mesma que uso para escrever os dados dos rótulos dos bichos da coleção. Mas a minha está entupida, porque deixei mais de dois dias fechada com tinta e esqueci de colocar uma gota de água na tampa, para evitar esse dissabor. E, para colocar o pontinho onde registrei o pássaro, precisaria daquelas cartelas plásticas chamadas Letra-Set, coisa que não disponho no momento, por questões financeiras.

Vendo o agente dos Correios carimbando, senti um alívio. Tinha cumprido a minha parte. Agora era só esperar. E tomara que a correspondência não se perca!

Os dias passam e, enfim, duas semanas depois do envio, recebo uma carta do editor da revista. Seu nome no envelope já assusta. Poderia ter sido negado e, com isso, todo o meu esforço teria sido em vão. Rasgo o envelope e, felizmente, tenho a boa notícia: “Recebemos seu artigo intitulado...”. E mais: “Em breve, enviaremos os pareceres de nossos consultores”.

Essas frases apenas aumentavam a ansiedade. Por que, afinal, não me mandavam logo as separatas? Quanto tempo eu teria de esperar?

Dois meses e nada. No terceiro mês, em tempo que poderia ser considerado um recorde para aquela época, recebo um pequeno pacote, contendo o original – todo rabiscado – e pareceres, cada um em duas laudas, mais a carta do editor: “- Seu trabalho contém alguns detalhes que necessitam revisão ou alteração, de acordo com as sugestões incluídas...”.

Mas, afinal, o que poderia haver de errado naquele texto impecável e absolutamente indefectível? O que esses consultores estão pensando? Estão me perseguindo? E esse editor? Deve ser um testa-de-ferro, aceitando passivamente tudo o que esses tais refferees dizem. Por que não me defende?

Tal e tal linha, erro aqui. Parágrafo tal, erro ali. “Como pode afirmar que...?”. “Essa frase precisa ser refeita, de maneira mais clara e objetiva”. Faltou a referência tal, faltou mais detalhamento nos métodos. O autor não cita tal, tal e tal estudos, que foram publicados e que precisam ser considerados na discussão.

Eu tinha tudo para desistir. Mas algo me impelia para um novo esforço. Afinal, era nada menos do que um “importantíssimo” registro de uma espécie para um certo lugar. E o mundo (sic) precisava muito saber daquilo. Vou esperar pelo amanhã. Recomeçarei tudo, depois de ler com calma todas as opiniões.

Pego o original e nele mesmo rabisco as alterações. Sorte que não eram muitas – pareciam muito mais quando li os pareceres pela primeira vez. Ah, vocês querem assim? Então que seja! Mudo tudo, adequo o formato, as frases... Será que nunca ouviram falar em estilo?

Pois é. De fato ficou melhor. Estou tão empolgado que até perdi a vontade de descrever tudo de novo o processo de digitação que ocorreu religiosamente, tal como nos cansativos parágrafos anteriores.

Até esqueci de mencionar que o editor, ao receber meu primeiro documento, teve de digitar uma carta de recebimento, postar no correio endereçando-a a mim e, ainda, teve de escrever mais duas cartas para os consultores, em cada qual incluindo cópias do meu estudo. Ah! Os consultores – eles também – tiveram quase o mesmo trabalho. Mas também perderam seu tempo para revisar, para datilografar os pareceres e também os enviaram pelo serviço postal. De tanto pensar no meu próprio umbigo, eu havia me esquecido disso. Espero sempre me lembrar disso: Editores e consultores merecem sempre nossa gratidão!

Passa mais um dia e tanto e o novo original está pronto. Lá vou eu de novo aos Correios, com nova carta “Atendendo as sugestões dos consultores...” e a versão definitiva. A sensação de dever cumprido era ainda maior do que na ocasião anterior. Afinal, eu tinha agora um verdadeiro artigo científico, revisado por pares e, portanto, submetido a um julgamento rigoroso.

A nova carta do editor, como esperado, não vinha em um pacote cheio de exemplares com cheiro de tinta. Era simplesmente uma notificação de recebimento. Só que desta vez eu sabia que tudo estava certo e, assim, nada de aflição. Eventualmente a missiva vinha acompanhada de uma indicação do volume e número previstos para a revista, o que dava uma satisfação enorme.

Depois disso, o tempo passava de maneira cruel. A cada dia, queríamos esperar pelo carteiro, aguardando o grande final. O sumiço do editor angustiava. Por que não diz logo que a revista acabou por falta de recursos, ou que o número previsto para a publicação iria ser preenchido por artigos de autores convidados?

Mas sabíamos que revistas boas e conceituadas, na década de 80, demoravam no mínimo um ano para publicar um artigo e não era nada incomum que dois anos e meio se passassem desde o envio dos textos. Então, a espera era de certa forma consentida e cercada de conformação.

Belo dia, o carteiro gritava: - Correio! Lá estava o envelope gorducho, tomado de selos e com os cantos rasgados: O original de revista e as cobiçadas separatas! A glória. Eu entrara para o mundo da ciência, mesmo sem saber um infinitésimo do que aquilo significava.

Depois das comemorações entre colegas de trabalho, da sagrada cópia para os pais, sempre com o pomposo acompanhamento do “Com os cumprimentos do autor”, o processo parecia ter sido concluído.

O tempo passou: entramos em 1985. Chega de sofrer. Agora conseguimos nos quotizar para comprar um computador para o nosso Museu. Regime de vaquinha mesmo. Com nota promissória e tudo! E também compramos uma impressora matricial, da marca Mônica. Que beleza a tecnologia! Adquirimos também um “programa” (uma palavra verdadeiramente nova para a época) chamado Magic Windows. Basta inserir um disquete (floppy disc de 8 polegadas) e dá pra rodar um moderníssimo programa de edição de textos. Tá certo, demora uns 5 minutos para que ele abra, mas logo depois posso inserir meu disquete e gravar meu texto ali. Demora um pouco para digitar também, pois para inserir um simples acento, preciso manter pressionada três teclas. De qualquer forma, acho que acabaram os meus problemas. Fim.

 

 

 

Assim era, nos passados e não tão distantes anos da década de 80, para se publicar um artigo. E eu gostaria que essa crônica servisse de fonte para inspiração para os iniciantes. Faltaram muitas coisas nele. Ainda falta contar, por exemplo, como fazíamos para divulgar nosso artigo. Afinal, o que publicávamos ficava confinado a umas poucas bibliotecas e era difícil publicar em revistas de grande distribuição. E para ser citado – o segundo degrau de uma publicação – era necessário que nossa obra fosse lida. Também faltou relatar o que acontecia quando o artigo era simplesmente...negado. Isso fica para a próxima.

 

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Nota: Esse texto, ao qual fiz pequenas modificações, foi publicado originalmente em 2011, no site do Coave (Clube de Observadores de Aves do Vale Europeu, Blumenau): http://www.coave.org.br/noticias_new.php?id=358.

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