Atualidades em zoologia

Tempo não é horário

Ver Currículo - Fernando C. Straube • 04 de September de 2017


            O momento do dia ou da noite em que ocorreu determinado evento é de grande importância para certos enfoques ecológicos ligados a quase todos os organismos. Para inúmeros animais, por exemplo, procede-se a indicação, no momento de captura ou observação, do horário em que ele foi coletado, como forma de contribuir para o conhecimento de seu ciclo diário. Graças a isso se pode estimar padrões, futuramente relacionáveis com a história natural, fisiologia, metabolismo, comportamento e até genética. Por tal motivo, dados circadianos são colhidos frequentemente pelos zoólogos, mas é muito comum que se confunda uma coisa (tempo) com outra (horário).

            Então a conversa começa assim: Se estamos no quilômetro 120 de uma rodovia tal, não nos referimos a espaço e sim ao local onde nos posicionamos naquele momento. Embora usemos “km 120”, isso nada tem a ver com a distância de 120 km que foi percorrida desde o marco zero da estrada. Para tempo e horário, o raciocínio é o mesmo. Como também para as datas ou os dias a que se refere uma observação ou quaisquer outros tipos de registro.

 

Relógio de sol em Saint-Rémy-de-Provénce (França)

           

 

            No Brasil, o sistema trivialmente adotado para datas obedece a sequência dia-mês-ano, indicações essas que podem aparecer por extenso (p.ex. em atas de reuniões: “seis de janeiro de dois mil e dez”) ou nos formatos numérico (p.ex. “6 de janeiro de 2010”) ou abreviado com separadores do tipo “barras oblíquas” (06/01/2010 ou 6/1/10 e variantes). Esse padrão difere profundamente do que é praticado em outros países, o que causa um certo desconforto. Exemplares de museu, por exemplo, mantidos em coleções dos EUA, podem gerar importantes dúvidas nas datas de colecionamento – questão bem conhecida dos sistematas e biogeógrafos. Afinal, por lá, é costume indicar antes o mês, seguido pelo dia e, por fim, o ano. A data de seis de janeiro de 2010 ficaria: 1/6/2010 que, para nós, é o primeiro dia do mês de junho do ano de 2010.

            Tratar dessa discordância pode parecer preciosismo desnecessário. No entanto, sabemos que muitos coletores tiveram os locais de coleta omitidos ou simplificados deliberadamente, mas foram detalhistas ao informar datas. Graças a isso, mediante revisões de seus itinerários, é possível resgatar (ou minimamente supor) detalhes sobre o ponto preciso onde espécimes foram obtidos e, muitas vezes, recuperar informações valiosas sobre a ecologia de espécies hoje muito raras. 

            Já a questão tempo e horário é um pouco mais complexa porque não apenas temos dessemelhanças de grafias, como também variações temporárias. Em muitos locais, é comum a menção a AM (Ante Meridiem: antes do meio-dia) ou PM (Post Meridiem: depois do meio-dia). Ainda pior, é o “horário de verão” que, como todos sabem, causa uma série de dúvidas sobre o coletor estar usando esse ou o “horário solar”...

            Esse quadro não tem muito sentido para alguns. Que diferença faz se observei às 14:00 ou às 15:00? Porém, se estamos colhendo informações – e se julgamo-las importantes – espera-se minimamente que sejam anotadas de uma maneira convencionada e que possam ser interpretadas por todos. Além disso, certos momentos do dia são importantes para definir alguns atributos biológicos. Diversos insetos e morcegos são crepusculares realizando maior parte de suas atividades nesse momento singular do dia. Muitas aves também pois vocalizam apenas no momento em que o sol começa a nascer e também quando está se pondo. Considerando a vocalização como um fenômeno essencial para o comportamento, definição de território, reprodução e também para algumas variáveis do metabolismo, o conhecimento preciso do horário em que são manifestados é realmente importante.

            Basta uma breve releitura de artigos técnicos tal como são escritos hoje em dia para percebermos que há uma enorme confusão com as indicações de horário. Quando um autor refere-se, por exemplo, a uma observação colhida às “oito horas e trinta e dois minutos”, costuma normalmente grafar a informação das seguintes formas, de acordo com a situação: “8 h 32 min”, “8h32min” ou “8:32 h”. Fica omissa a clareza quanto ao AM/PM e quanto ao horário de verão/solar. Certa é a confusão gerada por um pequeno detalhe desse – colhido, digamos em Fernando de Noronha – ao ser interpretado por  um pesquisador que reside no extremo oeste da Amazônia onde, como sabemos, não há horário de verão.

            O pior de tudo, porém, ainda está por vir. No mundo todo se confunde tempo com horário e aqui é importante começar a distingui-los.

            Imaginemos que um pesquisador de campo instale suas redes para capturar morcegos às onze horas da noite de certo dia e as mantenha abertas por cinco horas. Como o leitor apresentaria essa informação no ítem “Material e Métodos”? Como vimos, poderia ser expresso de várias maneiras: “As redes foram instaladas às 23 h e mantidas abertas por 5 h” ou “As redes foram instaladas às 11:00 h PM e mantidas abertas por cinco horas”, dentre tantas outras.

            Essas indicações, no entanto, não são plenamente informativas porque geram incertezas ligadas à grandeza considerada e ao momento preciso em que se deu o registro.

            Tempo, revejamos, é uma grandeza normatizada pelo Sistema Internacional de Unidades (SI: Système international d’unités), criado pela Conferência Geral de Pesos e Medidas (CGPM) da qual o Brasil é signatário desde 1959. Ele é medido por meio de cronômetro e alude ao intervalo preenchido por dois momentos. Esse intervalo pode ser apontado por várias unidades: séculos, anos, meses, semanas, dias, horas, minutos, segundos e várias outras. A unidade básica de tempo, para o SI é “segundo”. Isso não significa que, quando formos indicar um período de duas horas, devamos usar 7 200 segundos (ou 7 200 s). De acordo com o SI, existem também as unidades derivadas, que podem se expressas a partir das unidades básicas, desde que não necessitem de fatores multiplicativos ou de prefixos com a mesma função. Assim, é perfeitamente correto, e compreensível universalmente, mencionar o tempo dedicado a um trabalho como 2 h, que é a notação precisa para indicar tempo, utilizando-se o SI.

            Horário, por sua vez, é uma grandeza de frequência normatizada pela Organização Internacional para Padronização (ISO: International Organization for Standardization) por meio da ISO-8601. Esse sistema é pouco conhecido dos zoólogos, embora traga a solução definitiva para todos os problemas interpretativos indicados acima. Vale a pena uma leitura cuidadosa dos termos dessa norma. De certa forma, essas regras colidem com as definições da língua portuguesa, ainda que – para horário – tenhamos tão somente recomendações e não regras propriamente ditas.

            Resumidamente, a ISO-8601 postula que os valores de data e hora devem seguir a ordem do mais para o menos significativo. No formato mais trivial de datas, teríamos: ano-mês-dia. Assim, para indicação de um dia de coleta como “quinze de março de dois mil e doze” escreveríamos: 2012-03-15.  Note-se que, o mês e o ano (sem o dia), a conversão ficaria igualmente compreensível: “2012-03”, que se refere ao mês de março de 2012. Para horários, o separador não é um hífen e sim “dois pontos”. Portanto, as “quinze horas e vinte e dois minutos” aparece assim: “15:22”, sem a abreviação da unidade do SI (h = horas) que aqui poderia ser erradamente incluída e que tanta confusão tem causado.

            Por fim, há ainda a questão do tempo civil, ou seja, do horário oficial adotado em cada país a partir de um fuso de referência. Note-se que, se indicamos apenas 15:22 continuaremos na dúvida. Para isso foi criado o Tempo Universal Coordenado (UTC: Universal Time Coordinated) que se refere – para fins de padronização internacional – ao intervalo de tempo com relação ao Meridiano de Greenwich. Dessa forma, se agora em Brasília são 10:30 do horário solar, a grafia deveria ser 10:30-3UTC e, que, sob horário de verão passaria a ser 10:30-2UTC. Observe que, nessa última condição, os demais estados que não adotam o horário de verão, continuam a obedecer a notação anterior, portanto, 10:30-3UTC.

Espero sinceramente que em um futuro próximo se passe a adotar as normas ISO-8601 no contexto de anotações biológicas de campo, em publicações, relatórios e outros documentos – oficiais ou não – bem como em rótulos de exemplares de museus. Embora incômodo no começo, só nos trará benefícios no futuro.

Este post que aqui publico demorou 2 h para ser concluído e revisado. Foi publicado às 07:40-3UTC de 2017-09-04.

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