Coleções Zoológicas

A confissão de Etiénne

Ver Currículo - Fernando C. Straube • 27 de April de 2020


Prefácio: Hoje, por acaso, resolvi dedicar algum tempo a um texto que iniciara há uns meses, tratando de Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815) e do saque sobre suas coleções, anotações e desenhos, pelo exército francês em 1807. Eu estava lá pelo finalzinho do manuscrito quando eis que vejo a data de nascimento do sábio: 27 de abril! Exatamente! Fazem hoje 264 anos desde que nasceu na “Cidade da Bahia” (hoje Salvador) o grande naturalista baiano.

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A confissão de Etiénne

 

por

Fernando C. Straube

 

 

Era a manhã de 30 de novembro de 1807. As tropas do general Junot acabavam de invadir  Lisboa, como represália à não concordância portuguesa em aderir ao Bloqueio Continental imposto por Napoleão Bonaparte, com a finalidade de boicotar os ingleses. Dentre outras sanções, os planos napoleônicos incluíam a expansão dos territórios franceses e, com isso, Portugal acabava de ser tomada.

 

General Jean Andoche Junot (1771-1813) (Fonte: Wikicommons).

 

 

Consta que os soldados franceses, ao chegar à capital, ainda teriam visto ao longe, na linha do horizonte, os navios que levavam a família Real ao Brasil com um séquito de nada menos do que 15 mil pessoas (!), entre nobres e vassalos, além de uma portentosa biblioteca com 60.000 livros. Dom João colocava em ação uma das estratégias políticas (ou seria simplesmente uma fuga?) mais impressionantes de toda a História ocidental. Situação alegórica ou não, real ou não, expressa um momento particular: foi por um triz que hoje conhecemos a nossa biodiversidade com a profundidade que temos. Tudo poderia ter sido muito diferente...

 

 

Castelo de São Jorge (Lisboa) com a bandeira francesa hasteada (Fonte: Wikicommons).

 

 

A partir daquele momento, a capital do reino passava a ser fixada no Rio de Janeiro. Era, portanto, a primeira vez na história que uma colônia transformava-se, da noite para o dia, na sede de governo de uma corte europeia. Esse episódio, com todos os detalhes – alguns deles cômicos – é bem descrito e documentado. O leitor, dessa forma, não terá dificuldade alguma em se aprofundar no assunto, inclusive pela leitura de obras muito conhecidas como “1808” de Laurentino Gomes, que se tornou um verdadeiro best seller.

Mas, voltemos ao tempo. Até os sete anos que abriram o Século XIX, o Brasil era simplesmente fechado aos não-lusitanos. Por causa disso, o ato de viajar, particularmente aos forasteiros, para os (e principalmente dentro dos) domínios portugueses do Novo Mundo, prosseguia sendo algo virtualmente proibido pelas autoridades, norma que se estendia desde o Século XVIII. Essa restrição vinha do chamado “Pacto Colonial”, que obrigava o controle alfandegário de todos os produtos colhidos, gerados e manufaturados nas possessões portuguesas, cerceando todas as manifestações comerciais diretas com as colônias.

Foi justamente esse entrave que, por vários séculos, resultou em um reduzido contingente de informações sobre a natureza da Colônia, levando a um grande atraso de conhecimento biológico em comparação com outras nações. Afinal, saber quais eram e onde estavam as riquezas naturais poderia ser convertido em informações estratégicas e em grande parte ligada à própria soberania territorial, daí a preocupação, até certo ponto exagerada, com seus recursos ambientais.

Certo foi, que alguns mais espertos – como o barão Langsdorff (que depois ainda voltaria ao Brasil para consolidar uma grande contribuição à História Natural) – chegaram a aportar em nosso litoral, afirmando tê-lo feito sob condições urgentes decorrentes de avarias nas embarcações. Outro caso foi o do conde de Hoffmannsegg, mas esse merece capítulo à parte. Ambos, porém, entravam no mundo das exceções. Por aqui – ou melhor no Brasil do reino português – tínhamos um ou outro intelectual em atividade, via de regra progredindo e produzindo ciência, mas sem muita projeção mundial. Os dois mais importantes eram os naturalistas José Mariano da Conceição Velloso (o frei Velloso) (1742-1811) e Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815), lembrados adiante pelas contingências a que se ligaram.

Aparentemente, o intuito de se colecionar itens de História Natural com uma finalidade “científica”, surgira em Portugal como decorrência da reforma a que se submeteu a Universidade de Coimbra em 1771, por intervenção do Marquês de Pombal. Esse é considerado um marco cronológico, quando a entidade passou a contar com ampliações do corpo docente, inclusive com a contratação de especialistas de outros países. De fato, as três últimas décadas do Século XVIII correspondem ao chamado período do “Absolutismo Ilustrado” que levou alguns países como Prússia, Áustria, alguns estados alemães, além dos países ibéricos a absorver formas de governo derivadas das idéias filosóficas do Iluminismo. Um dos que se beneficiaram deste processo foi Domenico Agostino Vandelli (1735-1816), da Universidade de Pádua, que se correspondia com Carl von Linné, o famoso botânico sueco que frequentemente o estimulava a estudar a natureza do Brasil.

Algo especialmente importante, então, diz respeito à mudança de conceitos sobre o conhecimento e proteção da natureza do Brasil. Parece que d. Maria I, rainha de Portugal e mãe do então príncipe-regente d. João (depois d. João VI), movida por essa nova tendência e talvez por influência do próprio Marquês, passou a desejar conhecer a biodiversidade das colônias portuguesas. Essa curiosidade tinha obviamente um interesse também econômico e, por isso, passou a alavancar a inspiração para um maior conhecimento da natureza dos continentes ainda virgens.

Aqui entram dois personagens decisivos. Um deles era o frei Velloso, coletor cuidadoso e especializado em botânica, mas que tinha um perfil naturalista muito mais amplo, interessando-se por conchas, peixes, insetos e aves. Produziu vários escritos, dentre eles a “Flora Fluminensis”, um esforço hercúleo para inventariar e documentar a flora da capitania do Rio de Janeiro que se baseou em viagens levadas a efeito entre novembro de 1782 e junho de 1790. É de sua autoria também o “Aviario Brasilico, ou Galeria Ornithologica de Aves indigenas do Brazil”, impressa em Lisboa em 1800. Dentre outras curiosidades, destaca-se o fato de ser primo-irmão, por parte de mãe, de Tiradentes, com quem parece ter convivido durante da infância. Além disso, foi o primeiro cientista a estudar com profundidade o uso medicinal da “quina”, alcaloide oriundo de várias espécies de árvores amazônicas do gênero Cinchona e que era, desde os Incas, usado no tratamento da malária.

O outro, Alexandre Rodrigues Ferreira, era filósofo e naturalista e, mesmo residindo em Portugal, foi convocado para realizar uma grande expedição à Amazônia. Radicou-se assim, em Belém em 1783, tendo visitado as regiões de ilha de Marajó e foz do rio Tocantins e, de lá, seguiu pelo rio Negro, estudando Roraima, Amazonas e o Mato Grosso, onde se deteve especialmente na então capital, Vila Bela da Santissima Trindade. Por sete anos trabalhou nesses locais, colecionando espécimes, fazendo anotações e orientando seus desenhistas. Como Velloso, era um intelectual de primeira qualidade e produziu o primeiro grande legado científico para a Zoologia brasileira, em geral, e amazônica em particular. Organizou, assim, material de excepcional qualidade e rica iconografia com revelações totalmente inéditas.

 

Exemplar de Cephalopterus ornatus (Geoffroy Saint Hilaire, 1809) coletado por Alexandre Rodrigues Ferreira e preservado no Museum national d'Histoire Naturelle de Paris, fotografado por Luis Fabio Silveira.

 

 

Uma revolução na História Natural do Brasil

Com a transferência da sede do reino de Portugal para o Rio de Janeiro, a condição de isolamento do Brasil não poderia mais perdurar. Em 28 de janeiro de 1808, d. João rubrica em Salvador (Bahia), um documento de enorme valor para a História: uma carta régia determinando a “Abertura dos Portos” que não somente demonstrava sua oposição ao “Bloqueio Continental” como, também, dava início à primeira experiência liberal europeia desde a Revolução Industrial.

Sob tal envergadura representou, para a história do Brasil, o início de uma série de acontecimentos importantíssimos de cunho econômico, diplomático e estratégico, mas, notadamente científicos e especialmente ligados à História Natural. A colônia portuguesa estava agora realmente acessível e foi graças a essa determinação que a biodiversidade brasileira começava, afinal, a ser efetivamente descoberta e descrita de forma algo sistemática.

 

Original da carta régia, decretando a Abertura dos Portos, assinada por d. João em Salvador a 28 de janeiro de 1808.

 

Se a carta de Caminha é considerada metaforicamente a “certidão de batismo do Brasil”, pode-se dizer, assim, que a “Abertura dos Portos” deveria ser considerada o “diploma de bacharelado em História Natural” do país! Afinal, no resto do mundo ocidental, iniciava-se uma fase de efervescência científica, quando as nações mais destacadas passaram a manifestar interesse por regiões sulamericanas ainda quase desconhecidas e, em parte, já exploradas por estudiosos como Alexander von Humboldt e Félix de Azara. A condição propiciou uma notável evolução de todas as ciências naturais, ao tempo em que se multiplicavam as produções literárias, via de regra narrativas (visando ao público leigo) ou descritivas (para o meio técnico).

Embora a “Abertura dos Portos” tenha sido oficializada em janeiro de 1808, foi somente em 1816 que começaram a aparecer as suas primeiras consequências diretas e indiretas, ou seja, o grande afluxo de naturalistas viajantes, inspirados principalmente nas viagens de Humboldt. Vem desse momento uma avalanche de expedições tão bem conhecidas dos zoólogos e botânicos e que tiveram lugar por vastíssimas extensões do território brasileiro. Nesse sentido, nomes mais conhecidos como Spix, Martius, Natterer, Langsdorff, Wied, Sellow, Mikan são apenas alguns dentre centenas de outros que por várias décadas, dedicaram partes de suas vidas a investigar a natureza do Brasil.

  

O saque ao Museu d’Ajuda

Após essa breve narrativa, podemos retornar ao assunto principal, aquilo que – segundo a Encyclopédie Larousse – ficou conhecido como uma “...mission scientifique en Espagne et en Portugal”, como lembra ironicamente Paulo Vanzolini, na melhor e mais imparcial revisão sobre “A contribuição zoológica dos primeiros naturalistas viajantes no Brasil” (1996).

Saibamos antes, que se comparados Velloso e Ferreira, o frade foi mais eficiente: a “Flora Fluminensis” foi publicada entre 1741 e 1811, embora muitas de suas pranchas tenham permanecido em Lisboa. Já Ferreira, por sua vez, não teve a mesma sorte. Adiando constantemente a publicação de seus resultados (diários, anotações, pranchas e exemplares), não os conseguiu publicar e, com isso, eles acabaram mantidos por longo tempo em Lisboa, prontos para cair nas mãos de quem se propusesse a rapiná-los!

O cenário da invasão da cidade de Lisboa em 1808 pode ser bem imaginado. Na ocasião, os exércitos franceses “confiscaram” tudo o que podiam, com especial interesse nos bens deixados por integrantes da comitiva portuguesa. Vanzolini, ainda, nos conta que os  franceses  “...tentavam  cobrir com um véu diáfano de legalidade a nudez crua da expropriação: era celebrado um “tratado”, trocadas cartas de intenção, dadas explicações,  passados  recibos  e  mesmo fornecidas duplicatas do Museu de Paris em troca  de  doações  “voluntárias”,  merecendo assim  a  admiração  dos  próprios  saqueados”.  O povo português, atônito e surpreso pelo sumiço repentino de toda a família real, se dividia: alguns chegaram mesmo a aprovar a invasão, como mostrado na obra “Junot protegendo a cidade de Lisboa”, do pintor Domingos Sequeira.  

 

A obra “Junot protegendo a cidade de Lisboa” (1808) do pintor Domingos Sequeira, mostra uma alegoria com o general francês “acolhendo” de forma protetora, uma jovem frágil e desprotegida (a cidade de Lisboa), de um lado com Marte (a guerra! vencedora! a França! ) e Netuno (alusão aos ingleses e seu poderio naval) e – de outro – por Ceres e Minerva, representando abundância e sabedoria (Fonte: Wikipedia).

 

Passou então, a comitiva francesa a investir contra o chamado “Cabinet de Lisbonne”, ou seja, o Gabinete de História Natural do Museu Real d’Ajuda. Ali estavam diversos itens de excepcional valor histórico, incluindo documentos e espécimes de outros lugares do mundo, mas também várias pranchas originais de Velloso e, destacadamente, os manuscritos de Ferreira, assim como sua preciosa coleção de exemplares.

Essa não foi uma ação ocasional e sim algo previamente planejado há algum tempo. O ministro da guerra francês, em ordem de serviço expedida muitos meses antes (8 de março de 1808), já havia determinado que o gabinete português de História Natural deveria ser anexado ao espólio, em particular as coisas ligadas aos minerais, plantas e animais que faltam às coleções de Paris ou que existam ali “em um grau de inferioridade incompatível com esse digno estabelecimento”. Sabe-se também, que inúmeros pesquisadores franceses – por exemplo o botânico Pierre Cusson – já haviam enviado solicitações diversas daquilo que queriam de Lisboa, muito antes do fatídico episódio. Antoine Gouan, ictiólogo, teria escrito: “Je desire ardement des plantes seches de vos environs et de tout le Portugal”.

Segundo consta, nada foi feito como reação. De fato, além da passividade de Vandelli que sequer se opôs ao saque, o duque de Abrantes, comandante do exército português, chegou a emitir uma ordem de serviço autorizando o museu a retirar das coleções (uma expressiva quantidade de espécimes de mamíferos, aves, répteis e peixes) e encaixotá-las, para transporte à França.

Note-se que, como a investida não era apenas militar, acompanhavam o grupo duas pessoas, empenhadas no trabalho de agentes oficiais franceses para questões “científicas”; eram os naturalistas Geoffroy de Saint-Hilaire e seu assistente Pierre Antonie Delalande (1787-1823).

 

Etienne Geoffroy de Saint Hilaire (1772-1844) (Fonte: Wikipedia)

 

 

Estou me referindo – é importante lembrar – a Etienne Geoffroy de Saint-Hilaire (1772-1844), não a seu filho Isidore Geoffroy de Saint-Hilaire (1805-1861) que somente depois revelou sua cumplicidade ao saque. Muito menos me refiro a Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), de valiosas contribuições à História Natural no Brasil e que, com esses dois, não tinha vínculo familiar algum. A única conexão, diga-se de passagem, é o fato do mesmo Delalande ter sido o encarregado de coletar exemplares zoológicos da expedição que tinha Auguste como botânico, mas isso é assunto para outro artigo.

Etienne, companheiro de Lamarck e defensor de sua teoria, era um estudioso produtivo, especialmente interessado na Zoologia, paleontologia, anatomia e embriologia. Deixou um legado expressivo no campo das ciências. Pouco mais de 30 anos após sua investida contra Lisboa, sofreu um derrame e, ficando cego, forçou-se a se aposentar do museu, sendo substituído por seu filho Isidore. Além de Anselme Gaetan Desmarest, os dois foram os principais beneficiados do aproveitamento sobre o esforço alheio, cabendo-lhe a descrição de inúmeros táxons baseados nos escritos e espécimes colhidos por Ferreira.

Em 1808, portanto logo depois do saque ao Museu d’Ajuda, ele publicou um artigo, que pode ser considerado uma confissão de culpa, muito embora e também de acordo com Vanzolini, “Até o fim da vida, Etienne Geoffroy Saint-Hilaire referia-se, com evidentes orgulho e satisfação, a “mon voyage de 1808 au Portugal”, do mesmo jeito por que um zoólogo brasileiro poderia referir-se a ‘minha viagem a Marajó em 1958’ – uma maravilhosa oportunidade de coleta. O mesmo orgulho e satisfação revelava o filho e sucessor, Isidore Geoffroy. Foi de fato uma bela excursão, barata e proveitosa”.

De acordo com Brigola (2010), Isidore, na obra biográfica sobre o pai, e talvez para justificar a ação criminosa, dizia que “Les Sciences ne sont jamais en guerre”, ou seja, “A ciência nunca está em guerra” e, ainda, que “esse intercâmbio recíproco de luzes é importante para a ciência, e as guerras políticas nunca devem impedi-lo”. Essa tentativa de atenuar a atitude paterna, como se sabe, é forçada como nos conta Brigola. Afinal, até o momento da invasão napoleônica, Portugal e França mantinham relações pautadas pelo mais escrupuloso respeito das regras de respeito mútuo e pela prática do intercâmbio de informações, de serviços e de produtos. E Vandelli, com precursor do relacionamento técnico internacional, era um de seus mais eficientes intermediários.

 

No artigo publicado por Geoffroy (1808), uma breve descrição do ocorrido e uma lista do material zoológico e botânico que foi roubado do Museu d’Ajuda.

 

No ano seguinte, Etienne ainda publicaria diversos artigos sobre aquele mesmo material. Em um deles, datado de 12 de janeiro de 1809, enumera os acréscimos às coleções de aves e mamíferos de Paris até o ano de 1808. Ali informa não somente o material “coletado” na “Mon mission en Portugal” mas também faz outra confissão, agora sobre“Mon voyage en Egypt”, alusiva, como se sabe, a uma outra “expedição científica” ao Egito que, não por acaso lhe rendeu a eleição para um cargo na Academia Francesa de Ciências.

Muitos anos depois (1862), o zoólogo (e político: foi ministro da Marinha e também das Relações Exteriores de Portugal!) José Vicente Barbosa du Bocage (1823-1907) publicava o seu livro “Instrucções praticas sobre o modo de colligir, preparar e remetter productos zoologicos para o Museu de Lisboa” e, mesmo tardiamente, assim se referiu ao episódio, ampliando consideravelmente o que se conhecia sobre o material saqueado: “O célebre naturalista francês compreendeu a importância científica das collecções do Museu da Ajuda, compostas em grande parte de espécies que ali via pela primeira vez; escolheu portanto e fez transportar para Paris por ordem do General em chefe do exército invasor, todos ou quase todos os objectos que os compunham. As colecções que assim foram remetidas para França compreendiam perto de 1.600 exemplares zoológicos, diversos herbários muito interessantes do Brasil, Angola, Cabo Verde, Peru, Goa, Conchichina (este último do nosso célebre Loureiro); um grande número de minerais, quase todos metais preciosos e vários fósseis. Desta época data com a ruína total do nosso Museu a decadência das ciências naturais no nosso país; Brotero e Alexandre Rodrigues Ferreira não têm tido sucessor”.

Considero que o ocorrido naquele fim de 1808 mereça a atribuição indiscutível e unânime de uma pilhagem. No entanto, é importante lembrar que Portugal e França mantinham até então, como afirma Brigola, “uma ampla tradição de permuta científica, um fluxo epistolar que circulava em ambos os sentidos longamente alimentado e acarinhado na Ajuda, em Coimbra, em Paris, em Montpellier e que será, de resto, lentamente retomado depois da aventura espúria do imperialismo napoleônico”.

Convenhamos que, além disso, se o acontecimento foi desastroso para a autoria e os méritos por justiça pertencentes a um dos nossos primeiros naturalistas, ele também serviu para alavancar o início do processo de conhecimento sobre nossa biodiversidade. De certa forma, a invasão francesa foi um dos motivos para o fim do Pacto Colonial, com a assinatura da Abertura dos Portos: o Brasil agora passava a ser amplamente visitado e estudado do ponto de vista científico e por todas as áreas do conhecimento. Se d. João tivesse permanecido em Portugal, provavelmente ainda se passaria muito tempo até que o pacto fosse rompido e, como em ciência o tempo é sempre curto, uma grande infinidade de animais e plantas não endêmicos do Brasil e disponíveis em países adjacentes, poderia ter sido estudada prioritariamente.

Ao vermos, então, nos catálogos de animais brasileiros, nomes como “Neomorphus geoffroyi”, “Phrynops geoffroanus”, “Inia geoffrensis”, “Callithrix geoffroyi”, “Leopardus geoffroyi”, além de “Tangara desmaresti”, “Corythopis delalandi” e “Stephanoxis lalandi”, podemos logo remetemos nossa lembrança a esse episódio.

Ah! Antes que me perguntem por quê alguns epítetos são “delalandei” (como a borboleta Papilio delalandei) e outros são “delalandi”, explico: a inserção de terminação “–i” para epônimos masculinos, pode ser feita diretamente ao nome original (delalande + i = delalandei) ou ao radical gerado pela latinização do nome (delalandius, dando delalandi + i = delalandi).

 

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Para ler mais:

Barbosa du Bocage, J. V. 1862. Instrucções praticas sobre o modo de colligir, preparar e remetter productos zoologicos para o Museu de Lisboa. Lisboa, Imprensa Nacional.https://www.biodiversitylibrary.org/item/129847#page/1/mode/1up

Bediagam B. & Limas, H. C. de. 2015. A “Flora Fluminensis” de frei Vellozo: uma abordagem interdisciplinar (B. Bediaga & H. C. de Lima). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi (Ciências Humanas) 10. https://www.researchgate.net/publication/277975851_A_Flora_Fluminensis_de_frei_Vellozo_uma_abordagem_interdisciplinar

Brigola, J. C. 2010. Geoffroy de Saint-Hilaire e o saque das colecções e museus em Lisboa (1808). In: [p.179-192] F. Martins & F. Vaz (coord.). O ‘Saque de Évora’ no contexto da guerra peninsular. Evora, Cidehus, Edições Colibri. https://books.openedition.org/cidehus/4172

Daszkiewicz, P. 2002. A few portuguese letters and manuscripts brought to Paris by Etienne Geoffroy de Saint Hilaire, now in the manuscript collection of the Library of Muséum National d’Histoire Naturelle. Publicações Avulsas do Museu de Bocage (2a série), n° 8, 18 pp.

Fischer, J. L. 1972. Chronologie sommaire de la vie et des travaux d'Etienne Geoffroy Saint-Hilaire. Revue d'histoire des sciences 25(4):293-300. https://www.persee.fr/doc/rhs_0151-4105_1972_num_25_4_3303

Geoffroy Saint-Hilaire, Etienne. 1808. Note sur les objets d‘Histoire naturelle recueillis en Portugal. Annales Museum d‘Histoire Naturelle 12: 434-438. https://www.biodiversitylibrary.org/item/91672#page/437/mode/1up

Geoffroy Saint-Hilaire Etienne. 1809. “Sur l’Accroissement des Collections des Mammifères et des Oiseaux du Muséum d’Histoire Naturelle. Annales Museum d‘Histoire Naturelle 13:87-88https://www.biodiversitylibrary.org/item/92464#page/90/mode/1up

Geoffroy de Saint-Hilaire, Isidore. 1847. Vie, travaux et doctrine scientifique d’Etienne Geoffroy Saint Hilaire par sans fils, Isidore Geoffroy. Estrasburgo, Berger-Levraut. https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k862567/f5.image

Goeldi, E. A. 1895. Ensaio sobre o Dr. Alexandre R. Ferreira : mormente em relação as suas viagens na Amazonia e sua importancia como naturalista. Belém, Alfredo Silva & Ca. Editores. http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/221755

Hamy, E. T. 1908. La mission de Geoffroy Saint-Hilaire en Espagne et en Portugal (1808). Histoire et documents. Paris, Masson

Kury, L. 2011. Viajantes naturalistas no Brasil oitocentista: experiência, relato e imagem. Ciência, Saúde, Manguinhos 8(suplemento):863-880. http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v8s0/a04v08s0.pdf

Laissus, Y. 1972. Catalogue des manuscrits d'Etienne Geoffroy Saint-Hilaire conservés au Muséum. Revue d'histoire des sciences 25(4):365-390. https://www.persee.fr/doc/rhs_0151-4105_1972_num_25_4_3309

Pataca, E. M. 2011. Coletar, preparar, remeter, transportar – práticas de História Natural nas Viagens Filosóficas portuguesas (1777-1808). Revista Brasileira de História da Ciência 4(2):125-138. https://www.sbhc.org.br/arquivo/download?ID_ARQUIVO=342

Raminelli, R. 2001. Do conhecimento físico e moral dos povos: iconografia e taxionomia na Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira, História, Ciências, Saúde – Manguinhos 8(suplemento):962-992. http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v8s0/a10v08s0.pdf

Straube, F. C. 2011-2017: coleção “Ruinas e urubus: história da Ornitologia no Paraná”: Volume 2: http://www.ao.com.br/download/Ruinas_e_Urubus_VOLUME-II(HCT5-2012).pdf

Vanzolini, P. E. 1996. A contribuição zoológica dos primeiros naturalistas viajantes no Brasil. Revista USP 30:190-238. http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/25918

 

Biografias e generalidades na Wikipedia:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Primeira_invas%C3%A3o_francesa_de_Portugal

https://pt.wikipedia.org/wiki/Transfer%C3%AAncia_da_corte_portuguesa_para_o_Brasil

https://pt.wikipedia.org/wiki/Alexandre_Rodrigues_Ferreira

https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Mariano_da_Concei%C3%A7%C3%A3o_Veloso

https://en.wikipedia.org/wiki/%C3%89tienne_Geoffroy_Saint-Hilaire

 

Documentário:

O espólio roubado do ‘Cabinet de Lisbonne’https://ensina.rtp.pt/artigo/o-espolio-roubado-do-cabinet-de-lisbonne/

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