Taxonomia

Uma reflexão sobre Nomes Vernáculos Técnicos (NVTs): o que a Ornitologia pode ensinar?

Ver Currículo - Fernando C. Straube • 19 de May de 2020


Uma reflexão sobre Nomes Vernáculos Técnicos (NVTs): o que a Ornitologia pode ensinar?

 

por

Fernando C. Straube

 

 

O ato de denominar animais é algo muito antigo e, em geral, se liga à necessidade de precisão no reconhecimento. Não é à toa, portanto, que peixes, mamíferos, abelhas e aves – animais de interesse na alimentação - têm nomes bem fixados, independentemente da população conhecê-los do ponto de vista da classificação lineana. Há aqui um interesse de identificar e reconhecer o animal que serve como comida – a uma máxima certeza e acurácia.

Por outro lado, organismos de interesse em saúde pública recebem uma atenção mais generalista, que basta para que qualquer leigo logo se afaste deles ou simplesmente os liquide. Esse conceito mais amplo (seres nocivos são todos iguais – e vice-versa), então, tem função conservadora: vamos aniquilar não apenas o que é perigoso, mas também todo e qualquer outro bicho que com ele se pareça! Não há como não lembrar das cobras e aranhas, as maiores vítimas desse instinto, ao ler essa definição.

Além desses dois, há ainda os demais grupos (a imensa maioria de todos os grupos zoológicos!), cujos representantes não despertam interesse, pelos especialistas, na adoção de um único nome em português para cada espécie. Via de regra são organismos pouco conhecidos que, para o leigo, não passam de “bichos” sem utilidade conhecida. Logo, a comunicação entre pesquisadores e diletantes passa a ter importância secundária – ou nula.

Com relação às aves, os países que se dedicam a criar um único nome para cada espécie têm a mesma discussão há décadas. Não somos exceção, e seremos menos ainda se mantivermos a mesma linha de ação para isso. Trata-se de um debate sem fim. A próxima lista das aves do Brasil, que é periodicamente atualizada pelo CBRO (Comitê Brasileiro de Registros Ornitológicos, grupo da Sociedade Brasileira de Ornitologia) está quase pronta e, além disso, alguns outros grupos zoológicos (por exemplo, répteis) têm se dedicado a adotar o conceito de “nome vernáculo técnico” (NVT) em suas listas nacionais, com ou sem endosso de suas respectivas sociedades científicas.

 

Se a adoção de NVTs é de fato relevante, é outro assunto. A verdade é que, mesmo existindo binômios científicos, as pessoas necessitam de nomes em sua língua nativa, uma vez que a popularização do conhecimento de nossa biodiversidade está crescendo e, assim, a comunicação se torna facilitada. E essa realidade se torna ainda mais palpável com todas as inovações tecnológicas surgidas nas últimas décadas. Entra aqui a tão falada “Ciência Cidadã” que, por si só, já é argumento para que todos os zoólogos se dediquem à definição de NVTs, haja vista a possibilidade de agregação de informações colhidas por uma legião de pessoas interessadas tão somente em colaborar.

Primeiramente, é muito importante distinguir:

 

  1. Nome Vernáculo Técnico (NVT) – um único nome para cada espécie, indicado pelos especialistas na revisão (para aves, o CBRO);
  2. Nome popular/comum/vulgar/trivial – nenhum, apenas um ou muitos nomes que são descompromissadamente usados pelas pessoas nas várias regiões.

 

Ocorre que a maior parte das espécies não tem um nome popular, e isso exige a criação (pelos estudiosos) de uma denominação o mais consensual e precisa possível. Então, aqui um reforço: o nome em português que aparece na lista do CBRO é uma tentativa de padronizar a denominação para cada espécie e, mesmo que seja idêntico ao nome dado pelas pessoas, não é um nome popular. Isso é fundamental, uma vez que tais conceitos têm se confundido mesmo entre zoólogos. “Seriema”, por exemplo, é um nome popular e também um nome vernáculo técnico; “chupim”, “guaxe”, “macuco” e tantos outros, idem.  Por outro lado, “poaieiro-de-sobrancelha” ou “balança-rabo-leitoso” são apenas NVTs, uma vez que não são usados pelas pessoas comuns. São nomes inventados pelos ornitólogos para que cada espécie de ave tenha um nome em português.

Quando a última lista do CBRO foi lançada, em 2015, vários nomes vernáculos técnicos (NVT) foram modificados da forma como apareciam nas edições anteriores. A ideia era iniciar uma conscientização gradativa e, além disso, buscar indicadores que nos levassem a “regras gerais”, ou seja, que pudessem ser aplicadas a toda as aves. Um dos primeiros passos, e que serve como exemplo, foi a admissão de algumas linhas que nos proporcionassem melhorias e, assim, evoluíssem para uma normatização mais ampla. Propusemos adaptações fonéticas, de grafia, ortográficas, ecológicas e biogeográficas; sugerimos simplificações, adequações de parentesco, desambiguações, dentre várias outras ações. Também procuramos reforçar as mudanças com a recuperação de nomes genuinamente populares.

Acontece que uma parte desses nomes não foi adotada pelo mais famoso site de compartilhamento de mídias ornitológicas em todo o mundo, o Wikiaves. Isso acabou resultando em duas listas: uma do CBRO e outra do Wikiaves. É esse – e somente esse – o motivo da discordância entre os nomes de algumas espécies no artigo oficial do CBRO e no Wikiaves.

Note-se que, de nossa parte, seguimos uma linha bem definida para as alterações, que se resumiram a pouco mais de 10% da lista nacional. Como exemplo, temos a exclusão dos adjetivos “verdadeiro” e “falso”. Afinal é necessária uma reflexão acerca do que faz um “uirapuru” ser verdadeiro ou, ainda, um “tangará” ser falso. Para isso, consideramos que, se algo é verdadeiro, não necessitaria de tal adjetivo e, o contrário, algo “falso” – seria merecedor de uma denominação mais adequada. A lógica binária, porém, não foi usada pelo Wikiaves que preferiu manter o primeiro adjetivo, enfatizando o status de autenticidade a uma ou outra ave.

Além disso, há que se refletir sobre os motivos pelos quais chamamos um animal de verdadeiro ou falso. Por que um papagaio tem de ser verdadeiro? Nesse caso, até sabemos: é porque se trata da espécie (Amazona aestiva) mais procurada como ave de cativeiro. É a mesma lógica usada para o “trinca-ferro” (Saltator similis), para o “canário-da-terra” (Sicalis flaveola), o “gaturamo” (Euphonia violacea) e o “pintor” (Tangara fastuosa). Os demais, por exemplo, “piuí-verdadeiro” e “peixe-frito-verdadeiro” acabaram protegidos por esse guarda-chuva, mesmo que uma pessoa comum não faça a menor ideia do que seja um “piuí” ou um “peixe-frito”, seja ele verdadeiro ou falso.

Uma discussão como essa, embora pareça particularidade das aves, encontra paralelo com outros grupos zoológicos. Afinal, há para certos animais o incômodo artifício de confirmar o uso que se faz deles, muitas vezes ilícito, com tais selos de autenticidade. E isso pode não ser bom. Com um exemplo na Herpetologia, notamos que, instintivamente, nos vem uma ideia de risco de vida e possibilidade de acidente quando rotulamos uma cobra coral ou uma jararaca como “verdadeira”. Isso poupa as “falsas”, como a falsas corais (Oxyrhopus , Simophis, Erythrolamprus etc ) ou as falsas jararacas (Xenodon, Dipsas, Tropidodryas etc), mas exacerba a necessidade de matas as verdadeiras. Então, isso resultará em um recurso interessante para “salvar” da morte certa os “falsos” peçonhentos? Ou, pelo contrário, endossará as ditas verdadeiras ao trágico e implacável destino?

A questão aqui vai adiante: o quanto devemos ser democráticos?

O trabalho para definir NVTs é espinhoso, difícil e mal compreendido. Basta criar um nome meio estranho, ainda que seja coerente, para receber uma enxurrada de críticas.  Devemos abrir para uma consulta pública? E, nesse caso, quem deliberaria entre opiniões discordantes? Qual a viabilidade de darmos pesos iguais a cada uma das 1922 espécies da avifauna brasileira que, em breve, terá esses números aumentados?

Note-se que, se cada pessoa – como se tem feito - for emitir sua opinião para um ou outro nome, iremos nos afundar em um caos completo e indissolúvel. Digo isso porque não há uma regra para a criação de NVTs; eles são definidos por uma equipe que pode ou não ter bases linguísticas e etnobiológicas, e pode ou não contar com a opinião pessoal das pessoas que integram a comunidade leiga, entre observadores de aves, fotógrafos de natureza, outros zoólogos, etc. Assim, é fácil dizer, de forma particularizada, “eu não gosto de tal nome” ou “eu desaprovo tal nome”. Todos aqui poderiam fazer uma lista extensa de nomes que cada um considera estranhos na lista do CBRO, alguns risíveis, outros disfônicos, outros sexistas, outros mostrando cacófatos quase inaceitáveis...

E os NVTs, sendo denominações artificiais criadas pelos especialistas, recebem o status de nomes científicos, porém, na língua portuguesa. Dessa forma, discordar de NVTs equivale a discordar de “Trogon viridis” simplesmente porque as fêmeas dessa espécie não são verdes. Equivale a discordar de “Sporophila angolensis” apenas porque o curió não é nativo de Angola. Dentre outros tantos exemplos de equívocos binomias tão conhecidos pelos zoólogos.

O difícil (e que se trata do grande desafio para o futuro) é definir critérios para a criação desses nomes. Critérios que qualifiquem cada espécie e que possam ser aplicados a todas elas. Por exemplo: se um NVT tem de mostrar alguma (entre várias) característica diagnóstica, com relação a um grupo de espécies semelhantes – qual delas usar? Se um organismo tem dimorfismo sexual, qual sexo deve ser usado para a denominação? Devemos usar epônimos (p.ex. alguma espécie “spixi” poderia ser “fulano-de-spix”) ou indicadores geográficos (p.ex. “beltrano-da-bahia”, mesmo que não ocorresse apenas no estado da Bahia)? A lista de problemas é vasta.

O que se tem errado aqui até agora – e eu me inspiro no caso da lista do CBRO, para a qual colaborei com os NVTs até a última edição – é a falta de foco na definição de regras. Regras que possam ser aplicadas a todas as espécies, não em exemplos isolados. Pode parecer impositivo, mas acatar a imensa diversidade de opiniões irá destruir todo o trabalho, uma vez que isso é inviável! Se adotarmos essa linha democrática e utópica, veremos nosso trabalho atingir um emaranhado tão grande de possibilidades, que o projeto se tornará infinito. Patinaremos para sempre nessa história de “eu não gosto desse nome” ou “esse outro é esquisito”. 

O futuro para essa questão é compor uma lista brasileira de espécies (seja lá de qual grupo estejamos falando) que contenha nome científico + nome vernáculo técnico (definido pelos especialistas) + nomes populares. Aí, obviamente, entramos na necessária sistematização para grafia, admissão e correlação entre nomes populares e táxons a que nos referimos. Esforço hercúleo, mas factível por meio de consulta popular, aberta a qualquer pessoa que deseja informar um nome tal como é usado em sua região, com base em sua experiência própria ou por informação de terceiros. Falível? Sim, mas o que não é impreciso quando se trata de nomes populares, que nada mais são do que um sistema próprio de classificação muito anterior à proposta lineana?

Esse protocolo, ressalto, não somente enriqueceria o que sabemos sobre as denominações usadas em cada região, mas, especialmente, ajudaria a preservar esses nomes que constituem manifestação cultural autêntica do povo brasileiro, que precisa urgentemente ser preservada!

 

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Imagem de capa: alegoria sobre foto de Sergio Gregorio (visite: https://www.instagram.com/sergiogregoriophoto/?hl=pt-br); uso autorizado.

PS: O título original dessa publicação, modificado por questões estéticas, era "Uma nova (mesma de sempre) reflexão sobre os Nomes Vernáculos Técnicos (NVTs) de aves brasileiras aplicável a todos os grupos zoológicos". Parece que ficou melhor agora. 

 

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