Ver CurrÃculo - Fernando C. Straube • 31 de August de 2017
É difícil entender o que querem dizer os organogramas oficiais quando se referem a biodiversidade. Todo estado ou município que se preze tem algum gabinete ligado ao “Meio Ambiente” que se diz afeito à “Biodiversidade”. Penso que implicitamente se pretende com eles, e seus burocratas, proteger o elemento natural em um conceito que seja agregado ao da figura humana. Não é pouco, mas também não é apenas isso!
Recorro ao insubstituível Houaiss de cabeceira: “Biodiversidade: conjunto de todas as espécies de seres vivos existentes em determinada região ou época”. E, como consequência, tento agora localizar inventários de espécies de grupos específicos em municípios e estados brasileiros. Não poderia ser pior: praticamente inexistem. E quando estão disponíveis são fruto de trabalhos acadêmicos ou de estudiosos que, por algum motivo, resolveram patrioticamente fazer o inventário (de alguns grupos) da cidade onde residem.
A coisa não faz sentido. Há tempos vemos a palavra biodiversidade flutuando por aí, mas ela sempre é aplicada ao todo: aos tipos vegetacionais ou, na melhor das hipóteses, aos espaços julgados prioritários ou importantes para serem protegidos. Nada se fala de espécies que ali ocorrem e, quando muito, são ressaltados os grupos mais chamativos como plantas floridas, aves, mamíferos, borboletas e alguns poucos outros insetos. Talvez fungos, com belas fotos sem identificação, aludindo a espécies que não sejam champignons. Em resumo, os órgãos do executivo estão empenhados em proteger aquilo que não conhecem!
* * *
Moro em Curitiba. E gosto de fauna e flora da minha cidade. Mas tenho enormes dificuldades para descobrir o nome das espécies que observo em meu quintal. Sempre procuro por moluscos, platelmintos, isópodos, aranhas, opiliões e outros animais esquisitos; também plantas de todos os tipos. Quanto às aves, sei que posso me defender bem, pois é meu ramo de atividade e também porque me habituei a preparar listas de espécies de todos os locais onde residi ou trabalhei. Além disso, sei que tivemos a honra de acolher aqui alguns naturalistas e coletores que se dedicaram, desde 1820 à documentação de nossas aves nativas. Um deles – e talvez o mais importante – foi o austríaco Johann Natterer, o naturalista-maior do Brasil que no país se dedicou à coleta e conservação de uma quantidade fabulosa de espécimes da fauna. O outro, foi o francês Auguste de Saint Hilaire que, contemporaneamente ao anterior, passou por Curitiba sendo porém, mais afeito à flora. Esses dois nos deram o que há de mais precioso no conhecimento da biodiversidade – agora sim no puro sentido da palavra – que originalmente existia por aqui.
Eu mesmo, nestes mais de 35 anos de trabalho, já presenciei em minha cidade, episódios de grande interesse. Vi, por exemplo, os grandes caramujos do gênero Megalobulimus percorrerem o solo de certas reservas nos períodos chuvosos do verão. Também constatei enormes aranhas caranguejeiras atravessando ruas em bairros da periferia e borboletas azuis (Morpho) esvoaçando elegantemente, e em grandes quantidades, na primavera. Escutava o som rasgado de um besouro cerambicídeo (talvez um grande serra-pau?) intercalado com revoadas de morcegos (Artibeus) nas noites e madrugadas curitibanas... Observava, até meados dos anos 80, cachorros-do-mato (Cerdocyon thous) e codornas (Nothura maculosa) transitando por regiões hoje urbanizadas como as proximidades do Terminal do Cabral. Isso não existe mais. E pior: não temos documentação alguma da maior parte desses fenômenos!
* * *
Bola pra frente, pois ainda há tempo de resgatar uma parte do que tivemos algum dia. A Prefeitura de São Paulo oficializou em maio deste ano de 2017, mais uma edição de seu inventário da fauna e flora do município, por iniciativa da Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente (SVMA). O projeto, que originalmente tratava apenas da fauna silvestre, passou a partir do ano passado a englobar também a flora, tornando-se ainda mais completo. Converteu-se em uma prática compulsória, a ser publicada regularmente nos diários oficiais. Afinal alguém refletiu sobre o que é a biodiversidade e foi além dos blablablás dos sites institucionais. O município de Toledo, conhecido como a capital do agronegócio no Brasil (quem diria!) está também empenhadíssimo na busca por um conhecimento geral das espécies de animais e plantas que ocorreram e ocorrem em seus limites. Parece que há alguma luz no fim do túnel e espero que ainda haja tempo para isso.
Não há dúvidas que conhecer as espécies da fauna e flora dos municípios e estados brasileiros é instrumento fundamental para qualquer ação ligada à natureza e aos recursos naturais. Aliás não sei bem como é que tantas obras, planos de conservação, iniciativas e outras atividades foram realizadas sem esse subsídio indispensável. Como montaram suas pautas de trabalho os prefeitos e governadores quando sequer sabiam quais as espécies que ocorriam em seus perímetros de atuação? Prefiro nem ler os tantos documentos oficiais, quase sempre de difícil acesso, que foram produzidos até então, pois os que li foram risíveis – fracos e carentes de detalhes técnicos mínimos.
É por isso que, há anos, seguro uma bandeira: inventários biológicos dos estados e municípios deveriam ser obrigatórios na agenda das secretarias. Sim – e isso é fácil. Basta um ato institucional que os oficializem, considerando-os prioritários, como de fato são. Esses estudos, além disso, necessitam de divulgação ampla e gratuita, bem como atualizações periódicas, uma vez que não basta um repente de sensibilidade política que gere um inventário que nunca seja submetido à avaliação crítica e às necessárias correções constantes.
Aí, obviamente, irão se perguntar: “ - Mas como fazer estudos dessa natureza se eles são caros e exigem equipe especializada, raramente disponível na equipe administrativa desses municipios e estados?”.
Vamos incialmente a um exemplo cabal e indiscutível. Chama-se Wikiaves e pode ser acessado por qualquer pessoa pela internet. Foi idealizado em 2009 por um leigo em Biologia chamado Reinaldo Guedes. Hoje, graças à contribuição de quase 30 mil usuários, agrega 2 milhões de fotos e 124 mil mídias sonoras das aves brasileiras! Trata-se de uma plataforma simples e de fácil consulta. Graças a ela se pode ter uma noção muito boa – e fartamente ilustrada – das aves do Brasil, com acesso a seus cantos e com ferramentas de pesquisa excelentes.
Como então se inspirar nessa iniciativa e dar um passo maiúsculo no conhecimento das faunas e floras municipais e estaduais? A resposta é simples: um portal de fotos, sons e vídeos, abastecido pela legião de entusiastas que têm se envolvido naquilo que hoje em dia se chama de “ciência cidadã”.
Então surgirão novas perguntas: “Com quais recursos humanos isso pode ser viabilizado?”. Ora, um pequeno grupo pode dar conta do recado facilmente, desde que disponha de tais informações. Afinal, para cada tipo de animal ou planta se espera que gradativamente sejam engajados especialistas que ali podem dar sua contribuição, da mesma forma como podem usar de tais dados para suas próprias pesquisas. É um resultado de dupla-via, tal como tem ocorrido com o Wikiaves e seus parceiros ao longo de seus menos de 10 anos de existência.
Com base nessas informações, aos poucos as esferas institucionais irão agregando informações e atualizando-as à luz de nomenclatura revisada e mediante novos e novos registros que se acumularão ao longo do tempo, graças ao esforço e colaboração de todos os brasileiros afeitos à causa.
Não é difícil, nem custoso. Basta querer.
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