Atualidades em zoologia

Um segredo escondido por décadas

Ver Currículo - Fernando C. Straube • 22 de September de 2021


Dos tempos de criança, aqui em Curitiba, recordo de algo inusitado que fazia com alguns amigos: lutas de segredo. Maldade sem tamanho, logo cedo saíamos à caça, munidos de um fiozinho em cuja extremidade era fixada uma bolinha feita de sabão.  No amplo gramado, procurávamos pelos sinais: buraquinhos fechados por uma tampinha de textura semelhante à do papelão, tecida cuidadosamente por teia fina. Abrindo a portinha minúscula, com cuidado, introduzíamos a linha e, com movimentos rápidos, logo fisgávamos o nosso objetivo.

Eram “aranhas-de-alçapão” que nós, em razão de seus hábitos reclusos, chamávamos de “segredo”. Pertencem a um grupo (família Actinopodidae) aparentado ao das caranguejeiras (migalomorfas), porém, de dimensões muito menores e sem os pelos corporais tão característicos dessas. São aranhas relativamente pequenas, escuras e mostrando o cefalotórax e as pernas brilhantes, com tons ferrugíneos. A família, formada por algo em torno de 80 espécies, ocorre do Panamá à Argentina e recentemente seu gênero mais especioso (Actinopus) mereceu uma revisão detalhada (veja artigo referenciado abaixo – Miglio et al. 2020).

Agressivas na defesa de seu esconderijo, as “segredo” eram içadas rapidamente, pois cravavam as quelíceras no sabão. Daí em diante, bastava que pegássemos mais uma e a atração podia ser iniciada. Para requintar o cenário, muitas vezes fazíamos minúscolos quadrados como ringues de luta-livre, usando gravetos enfiados no chão, os quais eram contornados por barbante, criando um cenário quase midiático para o grande evento. Territorialistas, elas lutavam com grande agressividade, até que uma perecesse. Daí em diante, a vitoriosa era escalada para novo confronto até que, luta após luta, tivéssemos  uma “campeã”.

Nossa diversão durava algumas horas. Para ser sincero estendia-se até o momento em que não houvesse mais nenhuma delas no gramado. Afinal, para nós, haviam muitos e muitos outros gramados na cidade e aquela atividade não iria causar desequilíbrio algum nas populações naturais da espécie. Observo aqui a semelhança de raciocínio absurdo com algumas outras atividades predatórias: “posso destruir tudo o que tenho aqui no meu quintal, pois há de existir esses bichos e plantas por aí, em grandes quantidades”. Assumo aqui, publicamente, minha culpa infantil. E estendo minha crítica a todos os humanos, em especial aqueles que já cresceram e dispõe de informação livre e gratuita, bastando acessá-la!

Recentemente soubemos, por informação do amigo aracnólogo Rogério Bertani (Instituto Butantan), que a cidade de Curitiba conta com apenas uma espécie de aranhas dessa família. E muito provavelmente era essa que nos servia para o sádico divertimento dos momentos de ócio. Só que o mais interessante está nas entrelinhas: estou me referindo a Actinopus itapitocai, uma espécie que foi descoberta e descrita pela ciência em 2020 por Laura Tavares Miglio, Fernando Pérez-Miles e outro amigo, o Alexandre B. Bonaldo (Figura 1).

Isso mesmo! A aranha com que brincávamos foi descoberta como novidade científica apenas no ano passado (!), então várias décadas depois de nossa infância! E, não tenho dúvida, vários leitores poderão comprovar que também tinham essa diversão em tempos bem mais recuados!

 

Figura 1: Actinopus itapitocai em vista dorsal e, abaixo, detalhes de suas tocas, inclusive com o alçapão (Fonte: fotos de José Paulo Guadanucci, publicadas em Miglio et al., 2020)

 

Uma rápida leitura do artigo nos traz não somente informações preciosas quanto reflexões. Bastou um grupo de cientistas consorciar-se para estudar um pequeno grupo e o resultado foi revelado pela reavaliação de 18 espécies e pela descrição de nada menos do que 42 novas espécies somente do gênero Actinopus! Antes que me perguntem, ela recebeu esse nome porque um dos exemplares estudados foi coletado em “Itapitocaí” (Uruguaiana) no limite sudoeste do Rio Grande do Sul, perto de onde o rio Paraná define a nossa fronteira com a Argentina (Misiones).

E esse absurdo desconhecimento serve apenas para as pequenas aranhas segredo? Definitivamente não! Outro, como tantos outros, exemplo é o dos briozoários (Bryozoa), um grupo de invertebrados coloniais principalmente marinhos que, porém, abriga quase uma centena de representantes de água doce. Até o ano de 2017, os tipos dulcícolas desse grupo somavam apenas 14 espécies registradas no Brasil, muitas delas com descrições incompletas e identificação duvidosa. A despeito disso dois pesquisadores (Wood & Okamura, 2017), mediante um pequeno esforço de campo realizado em 2016, descobriram nada menos do que quatro novas espécies, dois novos gêneros e duas novas famílias, além de inúmeras extensões nas áreas de ocorrência até então conhecidas. Isso, ressalto, com base em amostras de somente oito pontos muito próximos, seis no estado do Pará (Santarém) e dois no de São Paulo (Pirassununga).

Assim, a pergunta que nos atormenta dia após dia é: o que ainda falta para que saibamos quem são os componentes de nossa tão rica natureza? Segundo Lewinsohn & Prado (2005), a biodiversidade brasileira abriga quase 10% da riqueza biológica do Planeta, sendo estimada em agregar entre 1,4 a 2,4 milhões de espécies. Esses números, porém, estão muito longe de serem confirmados pelo conhecimento atualmente disponível e certamente serão ampliados, com os indicadores que aparecem todos os dias.

Os pesquisadores têm feito de tudo para reverter essa condição, lutando contra escassez de recursos, humanos e financeiros, além da falta de material e com a carência de condições mínimas para conseguir realizar seus estudos. Mas o tempo é curto, pois, enquanto mantemos a maior parte das formas de vida sob um inaceitável anonimato, a natureza está sendo irreversivelmente destruída e, com isso, sepultamos para sempre toda e qualquer chance de ao menos conhecê-la superficialmente!

Hoje em dia, quase não se vê mais as “segredos” na nossa cidade. Talvez por termos nós, simples crianças, contribuído com seu declínio, mesmo em pequena escala. E certamente porque, ainda que adaptadas a um ambiente urbano, a maior parte delas sucumbiu frente às nossas e às tantas outras ações que alteraram a maior parte de nossas paisagens naturais.

De qualquer maneira, a lição está aí para quem quiser aprender. E aprendê-la se tornou uma questão de sobrevivência e, portanto, urgente e não somente necessária. Nunca é tarde para absorver os ensinamentos da natureza, porém, pode já ser tarde para reivindicar efetivamente a proteção e respeito pelo que nos restou.

E você? Também fazia brigas com essas aranhas e, hoje em dia, reflete sobre certas ações que praticou (e ainda pratica) e que contribuem – ativa ou passivamente - para a destruição da natureza? Já é um bom começo...

 

Foto de capa: Actinopus princeps, fotografada por Rafael P. Indicatti (uso autorizado).

 ______________________________________________________________

Sugestão de leitura

Lewinsohn TW, Prado PI (2005) How many species are there in Brazil. Conservation Biology 19(3): 619-624.

Miglio LT, Pérez-Miles F, Bonaldo AB (2020) Taxonomic revision of the spider genus Actinopus Perty, 1833 (Araneae, Mygalomorphae, Actinopodidae). Megataxa 2(1): 1-256.

Wood TS, Okamura B (2017) New species, genera, families, and range extensions of freshwater bryozoans in Brazil: the tip of the iceberg? Zootaxa 4306(3): 383–400.

Comentários

Posts Relacionados