Atualidades em zoologia

Os equinócios-nossos de cada ano

Ver Currículo - Fernando C. Straube • 04 de February de 2019


Os equinócios-nossos de cada ano

 

Recentemente a estante de História Natural no Brasil foi iluminada – a palavra é exatamente essa – com um novo livro: “O equinócio dos sabiás: aventura científica no seu jardim tropical”. O autor é Marcos Rodrigues, professor da UFMG, e foi lançado pela Editora da UFPR, com 175 páginas, incluindo um glossário e fontes de leitura selecionadas. Por questões de coerência, não vou desfiar aqui o currículo do autor – isso é fácil de conseguir por meio de algumas buscas na internet. O foco aqui é que a obra não se trata somente de um novo livro; o leitor, mesmo sem minha ajuda, poderá perceber isso em cada palavra ou frase de seu conteúdo.

Lá da Lagoa Santa, localidade consagrada por um dos nossos maiores vultos – Peter W. Lund –  é que o autor relata, dia após dia, os acontecimentos observados em seu próprio quintal, um grande terreno com 1.500 m2. Que não se espere dele apenas mais um exercício de contemplação de um parque nacional ou de alguma área protegida multidiversa. Com habilidade, Marcos mistura plantas e animais – cada qual com sua história de vida e envolvidos entre si do ponto de vista local e global. Assim, fica possível – e muito agradável – acompanhar ao longo dessa linha, todos os detalhes de relacionamento entre as espécies, que vão sendo observados e descritos pouco a pouco: frugivoria e dispersão, ecótonos, biogeografia de ilhas, orografia, ciclos circadianos, fenômenos explosivos, clima, camuflagem e mimetismo, fisiologia, comportamento e muitos outros.

Vejo nele a mais pura expressão de um novo conceito que começa a se formar entre nossos intelectuais e nos autores ligados à natureza. Pode ser também uma tentativa de resgate daquilo que negligenciamos ao longo do tempo, quando a especialidade se tornou algo paradoxalmente maior do que o todo. E o livro expressa exatamente isso: os 41 capítulos podem ser lidos independentemente, porém, todos eles guardam entre si uma rede indissociável muito mais ampla: o ciclo sazonal da natureza, seus componentes e peculiaridades. Trata-se de uma visão que necessita ser resgatada para que algum dia avancemos a completar o complexo quebra-cabeças dos fenômenos da natureza.

Se me permitem a contradição, eu confesso que fiquei muito impressionado com o capítulo denominado “A madrugada fria e a melancolia dos beija-flores”. Além de muito bem escrito, trouxe-me uma recordação sobre um assunto tratado por mim e Marcos em certa ocasião:

 “- 13 °C é frio?”

Para ele, em nossas mensagens trocadas – era. Para mim, curitibano, nem tanto. Já começa assim a reflexão pois de certa forma senti-me um personagem do livro. O clima e a interação dos organismos é, de fato, algo impressionantemente diverso. Se há sol, nuvens, chuvas, garoa manifestados no período circadiano – há também amplitude térmica, que oscila ao longo do dia e também durante o ano. Além disso, também há a percepção que cada pessoa tem sobre o clima! E isso – se considerada apenas a nossa espécie humana. Como exemplo, ele usa um beija-flor que, como sabemos, é um dos casos mais curiosos de adaptação metabólica à variação térmica. E conclui: “Não posso mais reclamar da minha segunda-feira, quando acordo já de mau humor, querendo jogar o despertador pela janela. Tenho a sorte ainda de contemplar o brilho das últimas estrelas neste céu azul-petróleo, ir até a cozinha e preparar uma bela e quente xícara de café”. Traça com isso um paralelo entre ele e um beija-flor que, em sua lida diária não encontra tempo “...para refletir sobre as vicissitudes da vida” e, em vez de café – dedica sua rotina aos néctares e insetos, buscando neles a energia necessária para a sobrevivência. As coisas importantes da vida são distintas, mas acabam convergindo para uma essência comum.

O livro, em minha opinião, não é somente um novo fôlego à genuína História Natural que, renovada, parece se levantar contra o mainstream das especializações. É também uma prova da maturidade do próprio autor, em busca de sua autognosia. Tenho bem claro para mim que os estudiosos, ao longo de sua trajetória, vão modificando suas expectativas, em busca do autoconhecimento. Dessa forma, lentamente, decidem-se por uma expansão no “objeto de estudo” e, ao mesmo tempo, retraem sua “área de estudo”. E aí está uma característica muito especial deste livro: um estímulo para que nós próprios passemos a olhar com mais cuidado o espaço em que vivemos em toda a sua plenitude.

Relembro, então, do enredo da obra milenar “A conferência dos pássaros” de Farid udin Attar, escritor persa do Século 12. Nesse livro, todas as aves do mundo se reúnem para decidir quem será seu líder e, para isso, são orientadas pela poupa (Upupa epops) a cumprir uma série de passagens que levará ao momento decisivo dessa empreitada: o encontro com a espécie ornitológica mítica chamada “Simurgh”.

Esses estágios, que necessitam ser vencidos, são representados por sete vales, intercalados por montanhas, e cada qual representa um desafio através da busca pela autocompreensão. As etapas são identificadas como a expectativa, a afeição, o conhecimento, o desapego, a unificação, a perplexidade, e, por fim, a abnegação e morte. Muitas delas desistem, simbolizando as falhas humanas para atingir a iluminação, e apenas trinta cumprirão todos os desafios. Ao encontrar com Simurgh, os poucos vencedores descobrem simplesmente que o elemento pelo qual procuravam nada mais era do que eles próprios! Assim, concluem que está neles mesmos o significado de toda a essência etérea e merecedora de constante busca por elucidação.

Esses rituais, para os religiosos, aludem à busca perene por uma força divina, portanto reconhecida como sendo deus. Considerando-se, porém, que o livro representa uma tradição sufi e se liga ao Islã, a interpretação pode ser outra – completamente distinta. No Alcorão, a 18° Surata é chamada “A caverna” e ali há a menção a um personagem que não é nominado, mas que alude a um ser misterioso que deve ser sempre procurado, visto que será sempre renovado. É o autoconhecimento, um estado evoluído que necessita ser colhido constantemente a partir das vivas fontes de vida e todas as suas manifestações.  

Marcos, com seu livro, repete o procedimento narrado por Attar, uma vez que intercala os momentos episódicos da narrativa com os obstáculos a serem vencidos ao longo de um ciclo que se repete ano após ano. Jamais iremos encontrar respostas para as dúvidas se não buscarmos as explicações com atenção e muita observação. Assim, se ele visa, com o livro, levar os leitores a encontrar um universo paralelo nos seus próprios quintais, certamente cumpre seu objetivo. E, de brinde, também nos leva ao estímulo para que busquemos pelo nosso próprio Simurgh. Que pode estar em nosso próprio quintal!

 

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Outras resenhas:

https://www.oeco.org.br/colunas/colunistas-convidados/27633-o-efeito-do-equinocio-sobre-o-canto-dos-sabias/

http://apassarinhologa.com.br/livro-o-equinocio-dos-sabias/

https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/215131/biologia-vista-no-quintal-de-casa.htm

 

Serviço:

“O equinócio dos sabiás: aventura científica no seu jardim tropical”, de Marcos Rodrigues, publicado em 2018 pela Editora UFPR, com apoio da Fundação O Boticário de Proteção à Natureza. ISBN: 978-85-8480-104-6, com 175 páginas.

Como adquirir: http://www.editora.ufpr.br/portal/livros/o-equinocio-dos-sabias-aventura-cientifica-no-seu-jardim-tropical/; preço: R$ 30,00.

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