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Crônicas de naturalista: morcegos no quintal

Ver Currículo - Fernando C. Straube • 17 de July de 2018


Em 24 de junho de 2018, publiquei no Facebook um texto sobre a minha experiência com morcegos no quintal da minha casa, no bairro Santa Cândida, região norte de Curitiba. Fiquei surpreso com a aceitação dos leitores e também com relatos e mesmo algumas fotos de amigos de diversos pontos do Brasil, interessados em enriquecer o conteúdo. Por esse motivo, decidi dividi-lo com os amigos do blog da SBZ, bem como adicionar novidades que surgiram nos dias seguintes.

 

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“Todos os dias, pouco antes do amanhecer, eu inspecionava as bananas que no dia anterior eram oferecidas aos passarinhos. Nunca sobrava sequer um pedaço. Nem as cascas... O culpado por essa intromissão em assuntos ornitológicos seria um gambá que, vez ou outra, já havia sido observado ali por perto.

Ontem à noite, porém, havia algo diferente. Morcegos voavam em grande número, logo depois do por do sol. E eram muitos! Com enorme habilidade, pareciam formar um enxame, incessantemente dando rasantes bem perto de nós, cumprindo uma rota circular mais ou menos constante.

Pensei comigo mesmo: “- São vespertilionídeos, talvez um Eptesicus ou um Myotis, que tão comumente vejo por aqui, com seu voo borboleteado e incrivelmente rápido”. Porém, graças à luz bastante intensa de uma lua quase cheia, foi possível ver que os morceguinhos antes pairavam, depois pousavam, sobre os frutos que sobraram do jantar dos pássaros.

Que dúvida: vespertilionídeos são insetívoros, então, o que fariam ali com tamanho interesse? Eis que o mistério foi revelado – agora com provas indiscutíveis. Eram morcegos de outro tipo, da família dos filostomídeos, portanto consumidores vorazes de frutos e, assim, excelentes disseminadores de plantas. E não foi difícil reconhecê-los, por uma característica bem peculiar com explicação técnica: o uropatágio (pele que fica entre as pernas) era vestigial, algo que podia ser claramente observado nas fotos. Mamíferos novo na lista do quintal de casa: Sturnira lilium.

E pelo visto ele gosta mesmo é de bananas. Tentamos oferecer um pedaço de manga madura. Nenhum deles quis e, hoje cedo, vi que somente um se aventurou a experimentar o novo cardápio, deixando ali as marcas dos dentinhos.

Declarado inocente, o gambá se safou desta vez...”.

 

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Nos dias seguintes, a movimentação dos morcegos diminuiu bastante, mas eles estiveram presentes seguidas vezes em que eu decidi observá-los. Tal como na noite inicial, se eu segurasse o fruto para o alto, eles davam voos rasantes sobre ele, quase que pousando para comê-lo. E se não o fizeram, provavelmente foi por receio, o que – acredito – poderia ser vencido se eu tivesse insistido um pouco mais. Além disso a manga, originalmente oferecida, amadureceu ainda mais – e foi vorazmente consumida até uma completa raspagem da casca.

Inicialmente pensei que eles tivessem exigências gastronômicas mais sensíveis do que pareciam. Refletindo melhor, conclui – obviamente sem nenhum tipo de experimentação – que eles estavam ali pela ausência de frutos disponíveis na região, como se esperaria para um início de inverno curitibano. E isso faria algum sentido, considerando que esse morcego, de hábitos exclusivamente frugívoros e com preferência por solanáceas, desaparece das regiões mais altas durante os meses frios, atendendo o que se chama de deslocamento altitudinal. Esse fenômeno é bem conhecido entre as aves da Mata Atlântica, dentre as quais seria possível listar várias dezenas que o cumprem, geralmente acompanhando a fenologia de ítens chave de suas alimentações.

De acordo com um estudo recente (Mello et al., 2008), porém, a presença desse morcego se define pela temperatura do ar ambiente a qual, uma vez reduzida drasticamente no inverno, força os animais a migrarem para pontos de menor altitude. Esses mesmos autores confirmaram, ainda, que mesmo estando disponível uma grande quantidade de frutos de solanáceas, ainda assim o morcego escasseava no inverno.

O gráfico incluído no artigo (abaixo reproduzido), evidencia a "variação mensal no sucesso de captura de Sturnira lilium na área de estudo, produção de frutos de Solanaceae e consumo desses frutos por morcegos. A linha de consumo de solanáceas é interrompida, porque não foram obtidas amostras fecais da espécie durante o estudo". 

Infelizmente eu não colhi informações sobre a temperatura no momento de minhas observações, ainda que recorde que a noite de 24 de junho era amena, talvez em torno de 16 °C.  Por outro lado, causa surpresa que os morcegos não estivessem consumindo as tais solanáceas arbóreas (que estão presentes no terreno vizinho ao meu) e sim apelando para as frutas oferecidas por mim, sabidamente de tipos e composições nutricionais completamente diferentes. Também outros amigos, que se manifestaram no Facebook, apontaram várias outras frutas que teriam sido observadas sendo consumidas por Sturnira lilium, mesmo em Curitiba.

Considerando que o referido estudo foi realizado em um ambiente natural (Parque Estadual de Intervales, São Paulo) e minhas modestas observações em condições muito distintas de uma cidade, poderíamos supor que – por aqui – os morcegos estivessem adequando sua dieta para uma situação urbana, comendo diversos outros ítens que não estariam disponíveis na natureza. Resta saber se aqui eles desapareceriam mesmo como decorrência das quedas de temperatura, assunto que pretendo investigar futuramente e que confirmaria a conclusão dos pesquisadores citados.

Todo o enredo dessa descoberta também me avivou a memória. Lembrei-me que, lá pelos anos 90, eu retornava a pé para casa à noite e, saindo do terminal de ônibus, muitas vezes eu era acompanhado por vários morcegos de outro gênero (Artibeus) que eu reconhecia pelo porte avantajado e grande envergadura das asas. Eles tinham uma razão para estarem ali: eu imitava o seu assobio e, assim, eles sobrevoavam a minha cabeça, talvez curiosos, talvez tentando esboçando voos de reconhecimento contra um invasor.

Nesse momento refleti sobre a grande quantidade de flagrantes que estão à nossa disposição mesmo no ambiente urbano de uma grande cidade. E que, por causa de outras prioridades, acabamos desconhecendo. O desvio de nossa atenção, enquanto assumimos o papel de humanos de cidades, é patente. Pensamos em outras coisas, enquanto o ciclo da natureza se desenrola oferecendo momentos únicos. Infelizmente desperdiçados...

 

 

por Fernando C. Straube, com fotos de Ana Paula Caron.

 

Referência:

Mello, M. A. R.; Kalko, E. K. V. & Silva, W. R. 2008. Journal of Mammalogy 89(2):485-492.

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