Ver Currículo - Hélcio Reinaldo Gil Santana • 14 de July de 2017
- Atualizado em 27 de novembro de 2022 -
O envolvimento de amadores em atividades científicas, tanto como colaboradores quanto como líderes de pesquisas está sendo incrementado e estimulado em muitos países. É a “Citizen Science”! A democratização da ciência com a participação de pessoas do povo em atividades ora restritas a profissionais de museus é imprescindível, ao passo que o distanciamento entre as instituições e a população pode ter consequências nefastas, vide o recente caso da Fundação Zoobotânica de Porto Alegre.
É muito comum que crianças e jovens se fascinem pela Zoologia. Valores educacional, lúdico e vocacional os permitem e os estimulam para que se voltem ao estudo da natureza ao seu redor. Foi com menos de 15 anos de idade que Alexander G. Bell Fairchild (1906–1994), Charles D. Michener (1918-2015) e Charles P. Alexander (1889-1981) iniciaram suas vidas zoológicas, por exemplo.
E no Brasil, país megadiverso, com demandas diárias de inventário de sua biota, mercê dos desmatamentos (incluindo os legais com autorização do estado), ocupação e degradação de toda a sorte? Assim como lá fora, nosso país também abrigou alguns expoentes amadores cuja importância o tempo não apagará. Registros desses esforços fazem parte hoje da literatura zoológica e dos acervos de nossos museus e instituições de pesquisa. Basta procurar em coleções e logo os encontrará. Amílcar V. Martins (flebótomos; 1907-1990) e Angelo Machado (Odonata; 1934-2020) são exemplos tupiniquins mundialmente reconhecidos, que deixaram sua contribuição acadêmica e em museus tão sólidas quanto as pegadas dos dinossauros que vemos hoje.
Os recursos públicos para pesquisa e conhecimento da biodiversidade são limitados, sobretudo em face da extensão de nosso território e a estupenda multiplicidade de formas de vida existente no mesmo. Nesse sentido, como já aconteceu no passado, a atividade amadora deveria ser vista como verdadeiro ato de cidadania, tanto mais em meio ao período da história humana em que a maior destruição de habitats, verdadeiro holocausto da natureza, ocorre diuturnamente por todos os lados. Falta apoiar e incrementar a atividade de amadores (muitos graduados) para a pesquisa da nossa megabiodiversidade, buscando o desenvolvimento de novos talentos, contribuição à ciência, educação, formação de uma atividade cultural e científica nobre e genuinamente nacionais. O reconhecimento legal da atividade amadora em Zoologia é necessário! O patrimônio natural e genético brasileiro é um bem de uso comum do povo! Assim, demanda nossa Constituição e a recente Lei que trata da nossa Biodiversidade. “Como é possível imaginar a pesquisa sobre biodiversidade dissociada de seu público alvo, do seu principal cliente, do seu consumidor, bem como da sua principal ferramenta, que são a população leiga e dos amadores?” (Mielke, CGC & Gil-Santana, HR., Boletim Informativo 80 da Sociedade Brasileira de Zoologia, junho de 2005, página 10).
No XXXI Congresso Brasileiro de Zoologia em Cuiabá (2016) apresentou-se uma moção aprovada pelo plenário de um simpósio para que futuros marcos regulatórios que tratem da coleta e manutenção de espécimes de animais invertebrados contenham o seguinte teor:
“A coleta, transporte e guarda de animais invertebrados, para fins científicos e/ou didáticos são isentos de licença ou autorização, exceto nos comprovados casos em que tais atividades sejam danosas ao meio ambiente. Os fins científicos e/ou didáticos poderão ser exercidos por qualquer pessoa física interessada, independentemente de graduação, nível de escolaridade ou títulos acadêmicos, com ou sem vínculo institucional, relação de emprego, treinamento ou aprendizado”.
Tal proposta vem ao encontro de diversos fundamentos técnicos e jurídicos aplicáveis ao tema. Por ora, ressalta-se que não é lúcido regular da mesma forma a coleta de invertebrados, como os insetos e aranhas, com a de vertebrados, como aves e mamíferos, pois o impacto ambiental é notoriamente distinto. Salvo exceções, inexistente no primeiro caso.
Não menos importante: é imprescindível que exista expressa previsão tanto legal quanto regulamentar da possibilidade do exercício de atividade amadora de pesquisa ou ensino, inteiramente desvinculada de uma instituição, ainda que seja desejável a associação institucional. Impedir o exercício legal da autonomia no estudo das formas vivas, que necessariamente envolve a coleta e conservação de exemplares, significará a destruição de novos e futuros talentos, além de imensurável prejuízo para o conhecimento que tanto nos interessa.
No prefácio escrito por Frederico Lane ao “Livro de Homenagem a Romualdo Ferreira D´Almeida”, de 1946, constatamos que naquela época o meio científico era cheio de preconceitos e hostilidades - “Tivesse Almeida nascido em outras plagas, sem dúvida teria da nossa parte a merecida consideração. Lamentavelmente, nasceu no Brasil ainda preso a uma administração burocrática de molde indisfarçavelmente colonial”. Se entrássemos num “túnel do tempo” e trouxéssemos R. F. D´Almeida de 1946 para os dias que nos correm, certamente ele elogiaria as mudanças sociais, pois era de família humilde, foi carteiro. Mas, se o levássemos a uma instituição científica hodierna seria mais bem recebido que no tempo das linhas de Frederico Lane?
“Em tempos idos, os critérios para outorga de direitos era a cor da pele, a classe social, o sexo masculino. A sociedade moderna entende isso como ignóbil, verdadeira ignomínia. A comunidade científica nacional deveria tomar a frente em combater o verdadeiro “Apartheid” [resultante das regras atuais para licenciamento/autorização em pesquisa zoológica, já que as mesmas criaram] de forma artificial, infundada e sem base legal verdadeiras castas, discriminando aqueles que, mesmo sendo capazes de realizar as mesmas atividades, não [têm] os mesmos direitos para tanto. (...) Já fizeram isso com negros, mulheres, índios e pobres aqui e no resto do Mundo. Já enxergamos, como povo, o quanto isso é imoral e antiético.” (Pereira JF, Alves RJV, Vianna MD, Mello ACG, Soares A, Costa LAA, Santana HRG, Tangerini N, Bastos C, Silva MA. 2007. Legislação Ambiental – Ponto de Vista. Boletim Informativo da Sociedade Brasileira de Zoologia, 88: 6-8).
Então, agora é hora de resgatar tais injustiças, observando as premissas Constitucionais de liberdade e igualdade atinentes ao nosso estado de Direito, outorgando àqueles que queiram estudar a Zoologia no Brasil, os mesmos direitos e prerrogativas, sem quaisquer preconceitos ou discriminações. Precisamos avançar com a “Citizen Science”, afinal envolver a população leiga justifica a ciência, e agregar amadores nesse processo é sabedoria.
Por outro lado, recentemente (02/09/18) tivemos a infeliz destruição da maior parte do acervo Zoológico, incluindo todos os insetos, do Museu Nacional do Rio de Janeiro (MNRJ) por um grave incêndio. A maior parte dos mesmos foi doada e coletada por amadores do passado. (vide, p. ex. meu outro blog: http://sbzoologia.org.br/blog/37-colecoes-zoologicas-particulares-inesgotavel-fonte-de-material-para-pesquisa..php). Se quiserem realmente refazer novo acervo para o MNRJ será preciso rever o posicionamento e a proibição que foram criados para os amadores ou não profissionais. Sem a ajuda dos mesmos será muito difícil ou mesmo impossível refazer um acervo minimamente útil para futuros estudos como os amadores do passado legaram ao MNRJ. Tal ajuda tornou-se impossível pela legislação atual, ao passo que a aceitação da proposta apresentada acima poderia torná-la factível, favorecendo, inclusive os próprios profissionais nesse desiderato.
Há de se ver que organizações estrangeiras, como a Taxon Expeditions (https://taxonexpeditions.com/), estimulam e permitem a participação direta de "citizen scientists" na atividade científica, incluindo a coleta e descrição de novos táxons. Demonstra-se, assim, ser atualmente factível e desejável o fomento da atividade amadora. Quanto mais participantes diretos da "citizen science" (no sentido de serem incluídos em todas fases de pesquisa como coleta e participação na metodologia científica de estudo dos táxons), mais benefícios teremos. Tanto para a proteção da natureza, pelo entendimento mais amplo da importância da sua conservação quanto para as instituições científicas, já que o financiamento de pesquisas em biodiversidade será visto como imprescindível pela sociedade. Certamente avançaríamos muito nesses desideratos se formadores de opinião e tomadores de decisão participassem de atividades diretas de estudos em biodiversidade como "citizen scientists".
Portanto, o incentivo e o apoio a amadores e autônomos deveriam partir dos profissionais; que "citizen scientists" tenham igualdade e liberdade para exercerem pesquisas em biodiversidade e assim possam contribuir direta e indistintamente para o conhecimento da nossa biota. Afinal, esta última é a detentora do "...patrimônio genético do País, bem de uso comum do povo..." (do Art. 1, inciso I da Lei 13.123/2015, grifo meu).
Agradecimento: ao entomólogo Carlos G. C. Mielke pelas valorosas contribuições, sugestões e correções ao texto.
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