Coleções Zoológicas

Os méritos das efemérides: o aniversário do Museu de História Natural Capão da Imbuia

Ver Currículo - Fernando C. Straube • 04 de April de 2024


Até meados dos anos 50, a magnífica coleção de animais, plantas e minerais (hoje no Museu de História Natural Capão da Imbuia, em Curitiba) mantinha-se sob a segurança institucional do secular Museu Paranaense, fundado em 1876. Eram tempos de grandes dificuldades, mas os conceitos atrelados ao acervo eram aqueles que se espera de um museu: pesquisa e documentação.

Por essa época, no entanto, já havia rumores sobre uma cisão institucional. A história é longa, mas resume-se à tendência nacional de implodir museus “muito gerais”, separando as coleções de História e Artes daquelas ligadas à Antropologia e História Natural. O terceiro museu mais antigo do Brasil passava agora por uma crise institucional surgida pela forte oposição aos museus mistos.

É assim que começa nossa história, tão pouco conhecida e tão mal interpretada...

Por uma felicidade do destino, foi exatamente nesse momento crítico que apareceu uma personagem que acolheu a causa das coleções biológicas do Museu Paranaense. Afinal, a ideia inicial era livrar-se o quanto antes daquelas plantas secas e animais empalhados que, para muitos governantes, eram meros estorvos “sem utilidade alguma”.

Foi assim que, em novembro de 1955, e desesperado com o futuro das preciosas peças, o deputado Edwino Tempski (1913-1995) apresentou à Assembleia Legislativa, um projeto para criação de uma nova instituição. A ela recairia não somente a guarda das peças de História Natural do antigo Museu, mas, uma enormidade de outras funções ligadas à pesquisa e à conservação de natureza paranaense.

 

Edwino Donatus von Tempski (n. Erechim, RS, 22 de setembro de 1913; f. Curitiba, PR: 21 de março de 1995), além de médico, foi um dos intelectuais mais importantes no Paraná e, tanto desempenhando suas funções como político (vereador e deputado estadual) quanto pelas inúmeras pesquisas históricas, antropológicas, linguísticas e de documentação que realizou, mereceria um destaque maior na memória da História Natural paranaense. Pautou toda a sua vida na defesa do meio-ambiente e foi um dos ambientalistas mais ativos no Paraná do Século 20. Era membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná e ocupava a cadeira n° 33 da Academia Paranaense de Letras, sucedendo dois ex-diretores do MUPA: Romário Martins e José Loureiro Fernandes (Fonte: Academia Paranaense de Letras, 2016).

 

Aprovada e sancionada pelo governador Adolpho de Oliveira Franco, oficializava-se a Lei n° 2.588 aos 30 de janeiro de 1956, criando o Instituto de História Natural (IHN), em Curitiba. Em sua concepção, o IHN foi, em seu início, uma entidade de grande responsabilidade e espectro funcional e, sem dúvida, a primeira instituição paranaense oficial e exclusivamente ligada à conservação de biodiversidade com suporte técnico próprio.

 

Primeira página da Lei n° 2588 de 30 de janeiro de 1956, criando o Instituto de História Natural em Curitiba.

 

Além da pesquisa científica, ampliação e manutenção dos acervos biológicos e geológicos herdados do Museu Paranaense, cabia ao IHN a centralização de todo o sistema de proteção ao meio-ambiente estadual, incluindo a fiscalização da caça e pesca, a Polícia Ambiental, a criação dos primeiros parques estaduais, a formação de estações biológicas para pesquisas e, ainda, a fundação de um Jardim Zoobotânico em Curitiba. Pela primeira vez, na história do Paraná, demonstrava-se algum interesse político em fortalecer a documentação e pesquisa (e conservação!) de biodiversidade, por meio de uma entidade forte e bem estruturada. A envergadura da instituição pode ser notada não somente pelo universo de atribuições conferidas às suas seções mas, notavelmente, pelo número de servidores envolvidos. Só no núcleo científico, constavam 35 funcionários, dentre os quais 20 de nível superior e, desses, 15 naturalistas. Era uma equipe realmente grande, mesmo se comparada com os quadros atuais de muitos departamentos universitários atuais.

Originalmente, o idealista Tempski propôs como sede os Mananciais de Serra em Piraquara que, segundo ele, seriam o local perfeito para o exercício de todas as atividades do novo instituto. Isso, porém, foi logo descartado e os planos voltaram-se a outro local. Foi aqui que, também pela primeira vez, levou-se em conta a utilização do chamado “Parque do Capão da Imbuia” como sede para abrigar os acervos. E isso tudo – relembro – no ano de 1956.

Apesar do esforço de alguns e, claro, pelo desinteresse generalizado do poder público que se seguiu, o IHN teve curta duração. Uma vez vinculado à Secretaria de Agricultura (e não mais à Secretaria de Educação e Cultura, como o Museu Paranaense), passou a submeter-se às oscilações de humor da classe política que, de ciência e documentação, jamais entendeu nada e tampouco demonstrou qualquer vontade de desenvolvê-las. Sem uma sede digna a altura de suas preciosas coleções, o IHN durou apenas 7 anos.

Em 1963, o Instituto de História Natural foi substituído pelo Instituto de Defesa do Patrimônio Natural (IDPN), criado (apenas no papel!) e instalado no Capão da Imbuia somente em meados de 1964. Sob essa denominação que o destino começou a ser desenhado. Coleções científicas passavam a ser secundárias, pois a esse novo órgão cabia quase que exclusivamente a fiscalização de caça e pesca, dentre outras atribuições, digamos, pouco relevantes.

Foi exatamente nos 12 anos de existência do IDPN que ocorreram os piores momentos no que diz respeito às coleções que, por um simples acaso do destino, ainda continuaram intactas. Criado dentro da Secretaria de Estados dos Negócios (!) da Agricultura, sua finalidade era: “...aplicar, desenvolver, coordenar e fiscalizar a execução da política governamental atinente à agricultura e pecuária, visando o desenvolvimento e a consolidação dêstes recursos econômicos do Estado”. Para um bom entendedor, meia palavra basta...

Foi assim que, sob enormes privações, os últimos pesquisadores que lá atuavam mantiveram-se quase que na clandestinidade, produzindo ciência com enormes dificuldades e tampouco ampliando os acervos. Estavam submetidos ao poderoso jugo da política de desenvolvimento agrícola, já naquele tempo refém do agronegócio. E foi assim que o corpo técnico altamente capacitado gradativamente afluiu para as universidades, onde poderia realizar pesquisas de fato.

Cito apenas dois episódios, dentre vários outros, da atuação catastrófica do IDPN. O primeiro deles é o seu pioneirismo no projeto de criação e soltura de peixes exóticos nos rios paranaenses; paralelamente a ele, também partiu desse Instituto a distribuição das primeiras matrizes de rãs-touro e, além disso, a proposta de introduzir codornizes e faisões nos Campos Gerais, para substituir codornas e perdizes, que já se encontravam em declínio. Se o último projeto não vingou, sabemos bem o resultado dos dois primeiros: tilápias, Black Basses e rãs-touro que hoje infestam nossos corpos d’água, expulsando nossa genuína fauna nativa em uma das maiores calamidades de contaminação biológica no Brasil.

 

Capa do livreto “Vamos criar tilapia” publicado (circa 1969) pelo IDPN.

 

O segundo episódio felizmente não prosperou, mas foi por pouco. Apenas quatro anos depois da transferência das coleções para o Capão da Imbuia, o então governador Paulo Pimentel iniciava seu projeto de derrubar por completo a mata do bosque do Capão da Imbuia, para ali construir um prédio portentoso para abrigar o Instituto de Biologia e Pesquisas Tecnológicas (IBPT, hoje Tecpar). Com isso, ao tempo em que se pretendia extinguir o IDPN, todas as coleções e biblioteca seriam despejadas em museus escolares da capital e interior. Ocorre que a sandice não passou despercebida. E teve uma reação violenta. No dia 1° de outubro de 1968, 320 universitários decidiam por uma greve estudantil pela proteção daquele que era um dos últimos remanescentes de mata de araucária em Curitiba e, também, em prol da manutenção do museu de história natural que lá funcionava. Não somente isso, montaram um acampamento na mata, ali permanecendo em vigília e, durante a calada da noite, arrancavam as estacas de demarcação que balizariam o pretendido empreendimento.

 

Mídia curitibana noticia o “Levante do Capão de Imbuia” (Fonte: Diário do Paraná, de 2 de outubro de 1968: p.1 do Segundo Caderno)

 

Em uma das conturbadas reuniões com o governador, os representantes da universidade insistiam pelas reivindicações e, em determinado momento, Pimentel simplesmente desistiu. Tomou a lista de exigências às mãos e disse que aceitaria a maioria dos pontos. Na frente do seu chefe da Casa Civil (que também era diretor do IBPT), pegou a planta da construção do prédio e a rasgou em pedaços: “- Esqueça o prédio!”, teria dito ele a seu assessor.

É realmente formidável imaginar como se deu tamanha mobilização no meio acadêmico, graças à consciência de um grupo de estudantes lutando por uma causa nobre como essa. Não fosse a paralisação – e a reação merecidamente tempestiva – hoje não teríamos o bosque do Capão da Imbuia, onde um enorme prédio se destacaria, como prova que uma simples canetada é capaz de gerar consequências absurdas.

 

Professores das universidades curitibanas produzem um memorial entregue ao governador Paulo Pimentel, requerendo a autonomia do Instituto e a preservação do bosque do Capão da Imbuia (Fonte: Diário do Paraná, de 7 de outubro de 1968: p.1 do Primeiro Caderno).

 

Depois do IDPN, as coleções mantiveram-se à deriva, simples coadjuvantes – incômodos – de políticas públicas voltadas a outros interesses e foi assim que os tão necessários cuidados à sua conservação passaram a ser executados por meras seções de outras entidades. Em seguida, os acervos passariam a outros órgãos estaduais: “Coordenadoria dos Recursos Naturais Renováveis (CDRNR) (1975) e escritório regional de Curitiba do Instituto Agronômico do Paraná (IAPAR), hoje IDR-Paraná (1976-1981). Nas entrelinhas das denominações ou implícita nos objetivos de cada um desses órgãos, sempre esteve presente a “defesa da natureza”, obviamente usada como mero artifício midiático que, na prática, demonstra o desinteresse generalizado sobre os fundamentos de um museu e sua relação com a pesquisa científica e a documentação da biodiversidade.

Em 1979, as coleções de História Natural, então guardadas pelo Instituto Agronômico do Paraná/IAPAR, ainda mereceriam mais uma intervenção sobre sua triste condição de abandono. E a chamada não poderia ser mais bem redigida, cuidadosamente criada por alguém que realmente conhecia o acervo, em um trocadilho ferino e bastante oportuno: “Agricultura ou Cultura”. Era a opinião do zootecnista parisiense Jean-Valentin Dobignies (1912-2002) que, por muitos anos, atuou no IHN como autodidata em Ornitologia e na curadoria das coleções zoológicas. Como poucos ele conhecia a lamentável condição e não mediu palavras para demonstrar seu descontentamento.

 

Agricultura ou Cultura: o manifesto de Jean-Valentine Dobignies, publicado no Correio de Notícias (9 de maio de 1979, p. 12).

 

É por esses e tantos outros motivos que aqui eu comemoro este dia 30 de janeiro de 2024, momento em que as coleções de História Natural ganharam independência, pela criação de uma instituição voltada à pesquisa e documentação de nossa fauna e flora.

Feliz Aniversário pelos seus 68 anos, Museu de História Natural Capão da Imbuia!

Longa vida aos seus preciosos acervos que não guardam apenas um pouco da nossa própria História mas, também, os testemunhos dos percalços enfrentados para o registro e conhecimento da biodiversidade. Que o passado nos guie a um futuro melhor! Que a História ilumine, por mérito, as datas que realmente devemos comemorar.

 

Em 14 de junho de 1989 eu recebia das mãos do próprio Edwino Tempski, os originais (com autógrafo e dedicatória) do projeto de lei que ele redigiu e que resultaram na criação do Instituto de História Natural em 1956.

 

 

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