Ver Currículo - Fernando C. Straube • 25 de January de 2023
Um novo Museu é sempre uma nova esperança
“If we, as a scientific community, value understanding changes in populations and ecosystems through time and the accumulation of scientific knowledge, then scientific collecting should continue. If the declines in collecting continue, the legacy we leave future generations will be an unfillable gap in the longest tangible record of life on earth, created precisely in the midst of widespread and dramatic environmental change. Is this a risk we are willing to take?” (Rohwer et al., 2022)
Antes mesmo de ser oficializada como capital do Mato Grosso, Cuiabá foi destino de vários viajantes oitocentistas que ali coletaram amostras de naturália, bem como de muitas outras áreas do conhecimento. Nesse sentido destacam-se Johann Natterer, alguns integrantes da Expedição Langsdorff (incluindo o próprio barão, junto a Hercules Florence, Adrien Taunay, Ludwig Riedel e Nestor Rubtsov), Francis de la Porte (conde de Castelnau), além de Herbert e Amelia Smith, dentre outros. Era o início do Século XIX um período de efervescência na História Natural, quando a chamada “Abertura dos Portos” (1808) finalmente autorizava as visitas de exploradores de outros países a um país-continente ainda inexplorado e, por esse motivo, altamente cobiçado pelos cientistas contemporâneos. Isso traria, como de fato trouxe, um formidável avanço nas descobertas sobre a nossa biodiversidade o que não se resumiu a espécies novas, mas também à respectiva documentação, em coleções, de uma infinidade de exemplares da fauna e flora. Podemos dizer que foi por essa época que a nossa Zoologia realmente teve início, por meio de ações coordenadas e objetivas para colher amostras e informações sobre a natureza brasileira.
Coincidentemente, também foi nesse período que, em 1818, foi criado o “Museu Real” (hoje Museu Nacional do Rio de Janeiro). Essa instituição que, em seus primeiros momentos, servia-se como entreposto para o envio de exemplares para os museus de Portugal, publicava - no ano seguinte - uma tradução do francês para a obra “Instrucção para os viajantes e empregados nas colônias sôbre a maneira de colher, conservar e remetter os objectos de Historia Natural” que é considerado o primeiro documento oficial publicado pela entida. Em seu corpus, destaco, a obra já alertava sobre a presença de tantos naturalistas estrangeiros que, embora competentes, ainda não tinham oferecido uma noção razoável sobre nossa biodiversidade. E conclui: “Só de Naturalistas dignos e judiciosamente empregados no Brazil por toda a sua vida se-poderá esperar uma serie de observações sabiamente feitas, comparadas e systematizadas, que ponhão em toda a luz a natureza intreira d’ésta Parte, e nos-ensinem os modos de a-converter em nosso proveito”.
Encarregado que fui da disciplina de “História da Zoologia no Brasil” (PPGZoo-UFMT), durante duas produtivas semanas em novembro de 2022, não havia como deixar de recordar desses acontecimentos históricos, tão pouco lembrados e que detêm total conexão com o que vou relatar a seguir. Isso porque, na ocasião, pude observar e acompanhar de perto o trabalho de vários professores e pesquisadores do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Mato Grosso/UFMT e, claro, a breve estada também trouxe-me experiências únicas.
Conhecer uma instituição de pesquisa não se faz lendo relatórios. É necessário vivê-la no cotidiano e, claro, observar certos parâmetros que nos permitem avaliar sua saúde. Museus de História Natural são situações únicas: precisam manter-se vivos e isso apenas é possível quando – além de bem cuidados – ainda contam com a dinâmica necessária, por parte de seus pesquisadores, para a investigação. Um museu de verdade tem mesas desarrumadas com livros abertos e fragmentos de anotações manuscritas, pinças, potes diversos, caixinhas e vidros com espécimes de vários grupos, aguardando para serem incorporados aos demais; tem gente entrando e saindo – e tem gente que sequer se vira para atender ao visitante, compenetrada que está em sua tarefa. Tem estantes cheias de livros e computadores ligados e também tem aquele cheiro especial que mistura o que vem de um café recém-passado com o dos conservantes utilizados para cada grupo zoológico.
Esses padrão de rotina, desconhecido daqueles que nunca vivenciaram a rotina de um museu de História Natural, é o que move e mantém essas coleções. Resumidamente é o que os distingue de meros depósitos. E, obviamente, quando encontramos grupos de pesquisa ativos em trabalho conjunto e constante cooperação com (e para) suas respectivas coleções – observamos claramente que todos esses detalhes também são indicadores de que há esperanças para o que hoje em dia chamamos de museus.
No Labat (Laboratório de Artrópodos) vi, pela primeira vez, um exemplar vivo de escorpião-vinagre, algo inesperado e absolutamente novo para um zoólogo “quase endêmico” da região Sul. Foi realmente inspirador conhecê-lo de perto, vivo – como deveria ser – e não somente por ilustrações de livros. Também fui apresentado a espécies bastante diferentes de aranhas, escorpiões e mesmo as grandes aranhas-chicote (Amblypygi) e solífugos (Solifugae). Inclui-se nessa verdadeira aula prática de biologia até mesmo um Schizomida (grupo pouco conhecido de Arachnida) que pude examinar, admirado, sob microscópio estereoscópico! Se onicóforos (Onychophora) não eram novidade para mim (já havia visto um único exemplar em um campo no Maranhão há mais de 20 anos), pode-se dizer que finalmente aproximei-me deles em razoável quantidade, vivos, caminhando pela palma de minha mão em momentos especialíssimos! Quantos bons professores de Zoologia do Sul do Brasil tiveram oportunidades como essas?
Na coleção ornitológica, foi realmente uma grande honra ver espécimes coletados nos anos 70 e 80 por velhos conhecidos meus da Ornitologia mas, também, um notável aporte de novas amostras. É um alívio saber que uma coleção, como também as demais, obedece critérios universais de boas práticas para a ampliação e conservação de seu acervo, deixando-a diversificada e contando com um banco de dados paralelo extenso, facilitando pesquisas futuras. A Entomologia, por sua vez, tomou-me duas ou três horas de um sem número de novidades em uma das maiores, mais ativas e mais organizadas coleções entomológicas da América Latina. Condições impecáveis de organização e conservação do acervo e uma grande movimentação de alunos estudando, examinando espécimes, consultando literatura foram algumas das minhas impressões sobre a coleção.
Já o acervo ictiológico não poderia trazer impressões diferentes, pela organização impecável, tanto no que diz respeito aos cuidados, quanto à classificação dos exemplares. Ali mesmo, por iniciativa de seu curador, há também uma espetacular coleção de Paleontologia, guardada em armários ainda improvisados, mas com total segurança e capricho. Conhecer esse acervo de perto trouxe-me uma grande emoção, quando pude ter contato direto com a nossa fauna paleontológica, absurdamente rica e representada por diversos grupos, dentre plantas superiores, pteridófitas, insetos, crustáceos e inúmeros vertebrados, bem como grupos outros já extintos. Por limitações de tempo não pude, infelizmente, visitar os outros acervos (por exemplo, Mastozoologia, Herpetologia, Malacologia etc), mas sei que recebem igual dedicação e interesse por parte de seus curadores.
Mas não foram apenas esses momentos de imersão que trouxeram-me encantamento. Embora já tivesse conhecimento de parte do processo, tive contato pessoal com o início de um novo projeto. É nada menos do que o Centro de Pesquisas em Coleções Zoológicas (CPCZ-UFMT), iniciativa do Instituto de Biociências da UFMT que resultará em um espaço cultural, enquanto centro de referência nacional para a pesquisa, extensão e educação científica com enfoque na biodiversidade brasileira, destacando-se aquela ocorrente nos biomas do Cerrado, Amazônia e Pantanal e considerando a sua localização estratégica na confluência destes importantes biomas sul-americanos.
O prédio do CPCZ, em vias de ser inaugurado.
Refiro-me agora ao espaço físico destinado às coleções zoológicas, já bem conhecidas no cenário científico brasileiro e reunidas por quase 40 anos de trabalhos extensos e exaustivos de coleta, curadoria e pesquisa. As instalações do CPCZ contam com três pavimentos de aproximadamente 1.000 m2, onde estão localizados seis salas para as coleções (com área de 100 m2 cada uma), 25 laboratórios associados e, ainda, dois laboratórios multiusuários para estudantes, além de espaços somando 260 m2 destinados a difusão cultural e educação científica, incluindo auditório para 90 pessoas, hall e sala de mostruário e exibição.
Coleções zoológicas regionais são relativamente comuns no Brasil e se espalham por todos os lados de nosso enorme território. Acolhidas tanto por instituições pequenas quanto por grandes universidades, no entanto, não são todas as que, como deveria ser, encontram-se associadas a projetos de pesquisa, ensino e extensão. Daria para contar nos dedos as coleções brasileiras que preenchem esses quesitos mínimos. Ainda mais raras são aquelas que, caminhando para deixarem de ser regionais, são unificadas em prédio comum, próprio e exclusivo para esse fim e, ainda, construído especial e exclusivamente para esse fim.
Conhecer um museu, ou uma coleção específica, quando o espaço a ele destinado ainda está em obras é uma oportunidade única. Ao tempo em que observamos a atenção aos detalhes, vemos o futuro brilhando nos olhos daqueles que o estão preparando para as gerações futuras. Em quase quatro décadas de visitas a uma expressiva variedade de coleções brasileiras, foram poucos os museus (ou coleções específicas) que eu tive a honra de conhecer quando ainda em construção. Foi o caso. E a experiência não poderia ser mais gratificante: há espaço, há cuidados, há prevenção contra incêndios e também contra ações de intempéries.
Espaço interno no CPCZ (UFMT) em construção: espaços cuidadosamente selecionados para acolher as coleções.
Os responsáveis por dar vida aos acervos - o elemento humano desse grande projeto – inclui pelo menos vinte docentes do Instituto de Biociências, entre eles os respectivos curadores e pesquisadores atuantes na área de zoologia, ecologia e paleontologia. As coleções do Instituto de Biociências que irão compor o CPCZ somadas, têm uma ampla representatividade geográfica e, assim, estão longe de um caráter regional (ver mapa). Ademais, já vêm sendo extensivamente utilizadas em projetos de pesquisa e na formação de recursos humanos em diversas áreas do conhecimento, tanto por pesquisadores e estudantes locais quanto de outras regiões do país e do exterior e estão vinculadas diretamente a dois cursos de graduação e cinco Programas de pós-graduação stricto sensu (Programa de Pós Graduação em Zoologia, em Ecologia e Conservação da Biodiversidade, em Biologia Vegetal, em Biologia - PROFBio e em Biotecnologia e Biodiversidade).
Representatividade geográfica das coleções de insetos, peixes e vertebrados terrestres, na coleção da UFMT.
É difícil nadar contra a correnteza e, mais ainda, quando os recursos são escassos (leia-se quando a distribuição desses recursos é desequilibrada) e quando todas as políticas públicas encarregam-se de desprezá-las, resultando em descaso pela própria opinião pública. Se os órgãos governamentais responsáveis não valorizam o que tem – como poderíamos esperar que o cidadão comum o fizesse? Os exemplos de omissão que resultaram em consequências dramáticas, foram vistos recentemente no Museu Nacional, Instituto Butantan e nos acervos da Unesp-Rio Claro. E eles avolumam-se dia após dia pela deterioração dos acervos e através dos tristes episódios vivenciados por todos os que se preocupam com a nossa memória e com a sua importância, enquanto depositários do precioso patrimônio ambiental brasileiro.
Não é um problema brasileiro, embora aqui seja crônico. Coleções tradicionais e bem conhecidas de outros países têm mudado seu remanejamento de pessoal, nomeando profissionais sem nenhuma formação ou experiência em curadoria e mesmo em Biologia. Além disso, a fundamental ampliação dos acervos tem sido muito negligenciada. Segundo Rohwer et al. (2022), as informações oriundas de 245 instituições, disponíveis no Global Biodiversity Information Facility (GBIF), mostram que a inclusão de novos espécimes nas coleções de vertebrados de todo o mundo, caíram entre 54 a 76% entre 1965 e 2018. A título de exemplo, as ampliações de acervos zoológicos, de acordo com esse autores, é – neste momento – inferior ao que se observou em plena Segunda Grande Guerra (1939-1945)!
Felizmente fugindo à regra, os professores da UFMT resolveram se unir e buscar uma solução razoável para as coleções que, ao contrário de tendência mundial, estão crescendo significativamente e, agora, encontram-se prestes a serem alocadas em um espaço à altura de sua relevância. E observe: é um trabalho difícil, abnegado que não se limita às suas atribuições rotineiras enquanto professores e pesquisadores – o que já é bastante exaustivo. A dedicação desses pesquisadores vai muito além. Atende às definições da concepção primária dos acervos, incluindo o projeto arquitetônico do prédio, até a busca por recursos para transformá-lo em realidade. Sem falar, naturalmente, dos outros detalhes logísticos, como a transferência do material para o prédio novo – um esforço incalculável e obrigatoriamente organizado de transporte seguro, a divisão dos espaços de acordo com a necessidade, dimensões das coleções e recursos humanos envolvidos e toda a projeção para que um esqueleto de cimento seja preenchido com vida.
Em breve espero visitar novamente a cidade de Cuiabá e o novo prédio, já em funcionamento e continuando seu trabalho como um importante centro de pesquisas e documentação que sempre foi; e sei – porque vi e acompanhei de perto – que isso apenas será possível pela dedicação e entusiasmo de seus idealizadores a quem todos nós devemos nossa profunda gratidão. Longa vida ao acervo zoológico da UFMT, prestes à sua mais importante renovação! Que continue trazendo – como trouxe a mim – vivências únicas e momentos tão especiais de descobertas pessoais os quais são, como sabemos, o combustível indispensável para nós zoólogos preocupados com nossas coleções!
Referência citada:
Rohwer VG, Rohwer Y, Dillman CB (2022) Declining growth of natural history collections fails future generations. PLoS Biol 20(4): e3001613. https://doi.org/10.1371/journal.pbio.3001613
Agradecimentos: Agradeço aos professores Amazonas Chagas Júnior, Daniela Ferreira, Vitor de Queiroz Piacentini, Fernando Vaz de Mello, Diego Felipe Rodrigues, Alexandre Cunha Ribeiro e Marcos André de Carvalho pelos ensinamentos, hospitalidade e atenção nos preciosos momentos compartilhados com eles nas coleções que se encontram sob seus cuidados.
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