Zoologia digital

Há algo errado no ritmo dos algoritmos

Ver Currículo - Fernando C. Straube • 09 de May de 2023


HÁ ALGO ERRADO NO RITMO DOS ALGORITMOS

 

A Ciência Cidadã é uma verdadeira revolução nas ciências naturais. Qualquer pessoa pode facilmente obter fotos com seu celular e carregar em um ou vários sites que acolhem esse  tipo de contribuição. E ainda há aquelas ferramentas que, por meio de recursos especiais, ainda não bem conhecidas por nós, oferecem identificação – o nome científico – do animal ou planta. Não há dúvida que tudo ficou mais fácil para que todos possam conhecer um pouco mais sobre nossa biodiversidade. E, claro, aproveitando-se da infinidade de estudos que os cientistas fizeram ao longo de séculos. Certo? Em parte...

Vamos à historinha: Era uma vez, um grande amigo que, em uma de suas incursões naturalísticas pelo jardim, tal como o fazem milhões de outros cientistas cidadãos, colheu uma bela foto de inseto no quintal. Era um tipo bonito, vermelho, com grandes pintas brancas arredondadas. Publicada no Facebook, logo sugeri que ele instalasse o aplicativo do iNaturalist e então começasse a carregar lá as suas fotos. Feito isso, eis que aparece: “Temos certeza que está neste gênero”, ou seja, Omophoita (família Coccinellidae); logo abaixo: “Principais sugestões”: Omophoita personata, Omophoita argus, Omophoita cyanipennis, etc. 

Tudo certo, afinal, Omophoita personata é, de fato, um besouro bonito, vermelho, com grandes pintas brancas arredondas. Para tirar a dúvida, recorri ao Google Lens e a resposta foi outra: Calvia quatuordecimguttata, também um Coccinellidae, bem como, alternativamente, outras espécies consideradas similares.

 

 

Pois é: quem diria que aquele exemplo clássico da borboleta e suas asas com formato de olhos de coruja iria voltar à nossa lembrança? Afinal, não precisa ser entomólogo e bastariam alguns conceitos mais fundamentais em Zoologia, para concluir - logo à primeira vista - que o bichinho fotografado não é um Omophoita, tampouco um coccinelídeo e, muito menos, um coleóptero! Sim, é um Hemiptera Pentatomidae e as opiniões apresentadas falharam miseravelmente em seu intuito!

Uma descompromissada consulta, na literatura, ao que Mayr chamava de “sibling species” já nos enriquece a discussão mas, além disso, pode-se encontrar extensas listas de exemplos de organismos que são muito semelhantes, porém, profundamente distanciados de qualquer parentesco. Se tratarmos especificamente do gênero Omophoita, vemos que contém pelo menos 83 espécies registradas no Brasil e mesmo o reconhecimento genérico não é tarefa das mais fáceis a um leigo: a diagnose do gênero é “...the pale macula in the visible vertex, three or more pairs of bristles on the labrum distributed irregularly and the first metatarsomere longer than the adjacent tarsomeres” (vide Begha et al. 2021). Quem viu isso na foto, ainda que fosse – de fato – um Omophoita?

Há três anos, com a colaboração do Elton Orlandin, já alertava:  “A coloração chamativa, não à toa similar entre várias espécies justamente para confundir predadores, também acaba despistando o caminho correto seguido por aqueles que pretendem chegar a uma identificação correta. Afinal, para muitos grupos de borboletas é necessário um exame que vai muito além das cores das asas de um ou outro flagrante fotográfico. O procedimento exige análise de vários exemplares e, ainda, obriga o estudioso a avaliar estruturas anatômicas (como genitálias) e inclui dissecções e minuciosas observações de estruturas microscópicas. E isso, naturalmente, não pode ser visto em fotos.” (Veja aqui o texto completo: http://sbzoologia.org.br/blog/72-a-renovacao-das-borboletas-e-as-colecoes-biologicas.php)

O alerta importante aqui é: pesquisadores demoram anos e até décadas para concluir sobre “como distinguir certo tipo de inseto de outro”. Muitos zoólogos, junto a grandes equipes, empenham maior parte de suas vidas para estudar um único gênero, porque há – de fato – grupos absurdamente diversificados e, ao mesmo tempo, muitíssimo semelhantes e com enormes questões a serem esclarecidas. Não é, nem nunca foi, uma tarefa fácil e também não é algo para ser resolvido da noite para o dia! Afinal, esse trabalho, tão esquecido pela maior parte das pessoas, necessita de muito estudo, de literatura, equipamentos, trabalho de campo, laboratório e – especialmente – de coleções científicas. Resumidamente, reforço aqui que o exame de detalhes distintivos de grande parte das espécies de nossa fauna são absolutamente invisíveis em fotografias comuns.

Por trás disso tudo há também um outro problema que, aliás, pode ser considerado como questão de saúde pública. Em certos sites como esses, há usuários, que contam com 200, 300 mil (e até muito mais) identificações e, acredite: de todos os grupos zoológicos!

Conhecendo-se os meandros que existem na taxonomia para identificações seguras de muitos táxons (não somente espécies!), é óbvio que esse tipo de informação nos leva a algo preocupante. Como pode uma única pessoa identificar várias centenas de milhares de organismos, incluindo aqueles que ainda sequer foram tratados em revisões taxonômicas, com um único – e até irresponsável – click? E mais: se considerarmos o momento em que alguns deles cadastraram-se nos respectivos sites, a coisa fica ainda mais estranha: há quem conte com 10 a até 20 identificações por hora, se calculado o tempo ininterrupto, portanto, desconsiderando-se o sono noturno, domingos e feriados.

Só espero que meu amigo - que debutou com uma prosaica foto de um besouro que não era besouro -  não desista de sua iniciação como cientista cidadão. O trabalho que milhões de colaboradores fazem ao redor do mundo visa justamente a isso: contribuir para que conheçamos mais sobre nossa biodiversidade.

A Ciência Cidadã é algo sensacional que, de certa forma, vem suprindo uma grande lacuna causada pela falta de recursos humanos e materiais para que conheçamos nossa natureza. Mas, vamos com calma: isso jamais será atingido se continuarem as tendências de uma busca insana por méritos discutíveis ou de competições cegas e sem nenhum critério, que continuem desconsiderando o trabalho desenvolvido há séculos pelos zoólogos.

 

Referência

Begha, B. P.; Santos, M. H. & Prado, L. R. 2021. Redescription of Omophoita octoguttata (Coleoptera: Chrysomelidae) and its immature stages, with notes on life history. Iheringia (Zool.) 111:https://doi.org/10.1590/1678-4766e2021016.

Comentários